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sábado, 29 de agosto de 2015

Thaiti 2015: o Paraíso não é para todos...

Ditez, que avez-vous vu?

Charles Baudelaire…


Quando a memória trai a nossa intenção de organizar o mundo a partir do desenho de uma agenda imaginada; quando a nossa energia psíquica não se concentra na árdua tarefa de dar sentido e razão a tudo, suponho que algo novo de nossas lembranças pode surgir para, então, lançar luz sobre o que aconteceu e, quem sabe com sorte e inconsequência, sobre o que acontecerá… Há tempos que ensaio voltar a esse blog, lançado às moscas por mais tempo do que o razoável da vida admitiria, a fim de escrever algo sobre a sétima etapa do circuito de 2015… Mais de uma semana correu desde o coroamento do francês e minhas intenções de escrever, aos poucos, eram minadas por motivos débeis, preguiça incontrolável e, sobretudo, o desejo de percorrer os autores de que gosto para ler as impressões deles sobre os dias em que os olhos do nosso mundinho orbitavam ao redor da onda mais temida do mundo…
Muitos dias de espera, ondas razoáveis quando confrontadas àquelas vistas em 2014 compunham o compasso do campeonato… Na água, favoritos, um atrás do outro, cambaleavam… As primeiras posições do ranking tornaram-se, nessa etapa, uma espécie de maldição… Entre os comentários, entrevistas acabrunhadas, eu escutava uma voz grave cortar o burburinho comum ao universo da competição e dizer: "Se estás a lutar pela camisa amarela, tremei, pobre mortal, pois no Thaiti verás apenas os inimigos aproximarem-se!" Adriano, Mick, Felipe, Julian não resistiram ao destino e, sem misericórdia, assistiram a incômoda presença de Oewn, Slater e… Gabriel tomarem corpo e densidade… De uma contenda de quatro surfistas, assistimos antes da etapa de Trestle um aumento considerável de pleiteantes ao caneco… Para quem acompanha esse jogo há muito, o Tour de 2015 desenha-se como o mais acirrado campeonato da história da  ASP… Bem certo que eu possa ser desmentido pelo DataSurf… Afinal, atire a primeira pedra quem nunca viu a memória ser traída pelo maior banco de dado, em língua portuguesa, do nosso esporte… Todavia, se os fatos não aconteceram exatamente assim, deveriam ter sido assim… Muita gente embolada… quem se destacará desse bolo? Cá com meus botões, incerteza…
Não sei bem por quê, mas parece-me que ficamos algo iludidos com o tom das últimas etapas no Thaiti, sobretudo a última, e esquecemo-nos de que o paraíso tem esse nome também porque, nele, somos acometidos por uma sensação de plenitude. O paraíso, pois, pode tornar o mais famélico dos mortais em um homem com sobrepeso, enfastiado e satisfeito com aquilo que tem… Ninguém ou quase ninguém parece resistir ao vento fresco da beleza, ao sabor doce da água de coco, às águas transparentes da Ilha Rei…. Principalmente, quando o mar não nos lembra que, no Thaiti e com determinadas condições de ondulação, o Paraíso torna-se, invariavelmente, Inferno… E como, caro leitor, é de seu conhecimento: a volúpia está no mal, pois no bem… encontramos apenas calma e serenidade…
Em 2015, Trismegisto não deu a honra de sua presença no arquipélago… Despidos do medo que se faz sentimento de sobrevivência, somente aqueles que tinham algo a perder resolveram resistir aos frutos do paraíso… Entre muitos, Jeremias e Gabriel… O primeiro lutava contra o trauma de ter visto a morte de perto, o outro contra o mísero começo do ano e as incertezas que começavam a atormentá-lo… Afinal, medo e vergonha sempre moveram os homens… Jeremias, possivelmente, ganhou a última bateria graças à prepotência do comissário… prepotência que lhe impede de ver, diante dos olhos, as ondas que quebram e contrariam as certezas das previsões… Pelo que soube, houve um dia da janela melhor do que aquele no qual se disputou a última bateria do evento.. Entretanto, as tolices do maior admirador de The Box da história do surf mundial, não retira do francês os elogios e o mérito do que ele fez durante a sétima etapa do Tour… Jeremias surfou com a irresponsabilidade de quem, antes de tudo, necessitava
 provar para si mesmo que ainda está vivo… A proeza, para nossa alegria, se deu durante um campeonato sempre aguardado, mas, creia-me, poderia bem ter acontecido numa praia deserta com ondas grandes… Jeremias queria provar algo para si mesmo, mas acabou por provar algo para o mundo… Confesso que a sua vitória, mesmo contra Gabriel, o meu surfista predileto, exceção feita ao extra-terrestre, provocou-me um sorriso do canto da boca…
E Gabriel? Bom, eu não sei bem o que se passa na cabeça de alguém que se tornou, em menos de cinco anos, uma celebridade mundial… O que o camarada vive somente pode ser medido, de longe, entre uma ilação e outra…O regojizo de ter sagrado-se campeão mundial, conhecido nas esquinas de seu país e apontado pela mídia estrangeira como o legítimo sucessor do maior de todos os tempos provocariam, em qualquer um de nós, sentimentos difusos e uma certa acomodação… O espantoso é Gabriel resistir e surfar com o sangue nos olhos de outras épocas… Surfou com tanta determinação e técnica que, até mesmo quem dele já desconfiava, se viu obrigado a retroceder para, enfim, admitir: se ele quiser, difícil será encontrar alguém a pará-lo…
A segunda perna do ano abre-se sem nenhuma previsão… o que pode acontecer é incerto quanto aos resultados, mas, para mim, Gabriel voltou ao jogo e, se por acaso, vencer o Tour de 2015…. estaremos diante de um dos maiores feitos da história do surf profissional…

Ps: Não gostaria de encerrar sem fazer uma mea-culpa… No início do ano, escrevi sobre Ítalo algo de que me arrependo… Dizia, no conforto de minha poltrona, algo mais ou menos nesses termos: "estamos diante de um surfista admirável, embora a base, incomodamente, aberta provoque em nós um sentimento de desequilíbrio constante apenas redimido pelos enormes aéreos completados, um após o outro… O ano para ele será difícil, porque o ano de estréia no tour é sempre difícil…” Hoje, parece-me que cai na mesma armadilha do comissário… previsões… devemos abandoná-las antes que a realidade nos faça de tolos… Ítalo é um surfista admirável e tudo que disse soa uma enorme bobagem quando o vejo ereto e calmo a atravessar atravessar a bancada da Ilha Rei… O seu teto? Não sei…mas que poderia, em pouco tempo, lutar pelo caneco… isso ele pode…