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sábado, 26 de março de 2016

Mick e a herança: um texto de despedida?

A repetição.


Nunca conheci um surfista que dominasse a arte da repetição como Mick Fanning… A obsessão desse camarada é digna de nota, sobretudo, pela constância do movimento, pelo vai e vem da prancha, que, de modo quase mecânico, ambiciona preencher os espaços entre a base e o lip, dentro dos limites impostos pela materialidade da água… Engana-se quem, por descuido ou por excessiva necessidade do novo, atribui ao surf dele a alcunha de repetitivo, cansativo ou coisa que o valha… Mick é um artesão, daqueles cuja natureza o inscreve, tal qual uma maldição, na busca de uma rotina, a repetir-se dia após dia… Confesso que esse movimento concêntrico do homem que ganhou, merecidamente, três títulos mundiais, e ainda possui grandes reservas para os próximos anos, provoca-me enorme admiração.
A exuberância de seu surf nasce no contra-fluxo do tempo em que vivemos, o qual está sempre a espreita do novo, do movimento inusitado, capaz de saciar a nossa sede pelo estímulo desconhecido, sem face. Vivemos um período da história em que a nossa sensibilidade fora forjada para sempre esperar a surpresa… Não por acaso, o contorno do território onde o surf de competição faz-se pátria compreende algo do fluxo desse rio. Os elogios à manobra arisca, à descoberta pelo espaço aéreo empreendem uma alteração dos critérios que arquitetam a hierarquia de valores, orientadores do julgamento que define a fronteira a separar as crianças dos adultos. O surf de Mick, aos olhos de quem dita as tendências, sofreu, de algum modo, os efeitos desse novo tempo. Quando voltamos ao ano de 2015, lamentamos a derrota do camarada, a despeito de torcermos para Adriano, menos pela qualidade de seu surf e mais pela compensação das tragédias com as quais teve de conviver durante o tour… 
A beleza do eterno retorno do mesmo

Quando menino, meu pai ouvia, dia sim outro também, um pianista chamado Glen Gould. A vitrola de casa era o endereço desse canadense que odiava Mozart e, vez ou outra, cantarolava durante as gravações de seus discos. Por não conhecer nada da teoria musical e, sobretudo, porque a música clássica me foi, quando criança, algo de difícil digestão, assombrava-me o enorme respeito que meu pai fazia questão de expressar pelo camarada. Dizia ele: estamos diante do pianista mais obsessivo do século XX, meu filho… Atente para o modo como uma nota desdobra-se na outra, sem firula, sem excessos…. Gould e Mick, refratados pela minha subjetividade, possuem o mesmo código genético. A beleza da arte desses dois camaradas encontra-se na harmonia do movimento, na busca pela restituição de um equilíbrio entre o decorrido, o presente e o que está por vir…
A sensibilidade da crescente torcida brasileira, na maioria composta por jovens que se aproximaram do circuito animados pelos ventos da tempestade, parece apontar para o surf do australiano certa impaciência. Encontramos, facilmente, nos fóruns especializados comentários mal-humorados a respeito da linha desenhada por Mick, pela sua relutância de acompanhar o novo tempo de kerrupts, aéreos 360 e sushis rolls… Ao passo que o tour encontra as últimas etapas, vemos, isso sim, o camarada boa praça sempre a disputar o caneco… Malgrado a resistência de alguns comentadores das transmissões on line contra o surf dos brasileiros, há uma enorme reverência a ele advinda do coração do establishment, sobretudo daqueles que o compõem e são versados na língua de Shakespeare.
De onde nasce esse descompasso? Certamente, seria um equivoco atribuir as disputas nacionais a razão primeira dessa cizânia. O fato é que o Brasil é um país jovem no cenário do surf, como sempre nos lembra Nick Carrol… E a despeito da bela história desenhada pelas primeiras gerações pátrias, não possuímos a mesma qualidade da tradição de nossos amigos australianos, americanos e havaianos… Não possuímos porque iniciamos a nossa trajetória em outro diapasão. A consequência desse processo, somado ao contorno da sociedade do espetáculo, é a forja de uma sensibilidade incapaz de medir a qualidade do surf realizado, justamente, pelo viés minimalista. Somente os mais velhos, ou aqueles jovens cujo coração parece ter a idade de um homem nascido dos pactos estabelecidos por vassalos e suseranos, resistem contra a necessidade de que cada nova etapa do tour seja coroada pela manobra da vez, aquela que nunca ninguém viu… 
É preciso, para chegar a uma maturidade de um juízo apto a reconhecer no aperfeiçoamento técnico a beleza que ele merece, rodar muitos quilômetros, carregar o peso das gerações precedentes e, sobretudo, reconhecer que a qualidade nasce do trabalho exaustivo de depuração. Mick, por essa perspectiva, é um mestre, um mestre artesão… Ao transformar a vida na busca ambiciosa pela perfeição, o surf de Mick almeja consertar as arestas por mínimas variações, aprimoradas a cada ano, a cada novo encontro com essa ou aquela bancada… Nada muda, mas tudo é completamente diferente. O camarada parece sempre estar em luta renhida, concentrado em suprimir cada ruído que lhe impede a construção daquilo que imaginou ser a perfeição do movimento. A linha, pois, não é mecânica ou robótica como ouço e leio por ai… Na verdade, Mick, como nenhum outro, assumiu a responsabilidade da decantação como epicentro de sua obsessão…

O efeitos colaterais de um mestre diante dos alunos
  Quando alguém é alçado a categoria de mestre por seus pares, isso não ocorre porque a idade avançada torna-se sinônimo de maturidade.. No surf, mestre é aquele quem aponta caminhos, quem se torna modelo. Quando nos aproximamos da maestria de Mick, identificamos, com facilidade, a sombra de seu melhor amigo… Joel está para o tricampeão mundial como uma extensão… Nasceram juntos, aprenderam a amar o peso da borda na parede lisa na mesma medida que desprezam o movimento interrompido, a agressividade contra a fluidez da prancha… Mas Joel, quem surfa o fino da bossa, não é Mick justamente porque não possui a mesma fúria e velocidade com que o loiro projeta-se na onda… Se as semelhanças são muitas, as diferenças…. bem, as diferenças são maiores e, embora esse não seja um critério absoluto e completamente confiável, faz-se evidente pela quantidade de canecos de cada um…
Com a proximidade da aposentadoria desses dois camaradas, não encontramos, de modo fácil, quem lhes sigam os passos. A nova geração, como aliás é de esperar-se, quer um lugar ao sol… Para isso, o desprezo, mesmo que não vejamos traços dele nos discursos de louvação dos mais novos para os dois amigos da Gold Coast, está lá… na opção por uma radicalidade que se realiza na manobra quebrada, no espaço aéreo… Talvez Adriano e uma porcentagem do surf de Julian sejam uma tentativa de sobrevivência daquilo que foi acumulado por anos de circuito pelos amigos que sempre se consideraram irmãos… Talvez… Mas… confesso que não tenho certeza de serem eles os herdeiros legítimos do legado de Mick… 
Por estranho movimento dialético, a sobrevida dessa tradição se encontra  onde menos se espera, onde jamais poderíamos supor haver refração… Para mim, o camarada que iniciou a revolução, que abriu e pavimentou o caminho do futuro, Gabriel Medina, é quem reivindica para si a continuidade do modo de Mick compreender o surf… Quando vemos a eliminação do filho de Charles na Gold Coast e as inúmeras discussões ao redor daquela onda em que o rapaz abriu mão de um aéreo por um pequeno floater para, depois, repetir por mais de dez vezes o mesmo movimento de backside… temos uma pista… temos mais, temos uma consciência…
Gabriel é um revolucionário, da mesma forja de onde saiu Slater, Irons, Curren, Carroll… Com pouco mais de 15 anos, o camarada assumiu para si a responsabilidade de orientar e conduzir a mais emblemática troca de guarda já realizada no surf de competição… Afinal, não trocamos apenas os nomes do topo do ranking, trocamos, isso sim, o modo de compreender o próprio surf… A consolidação da nova escola, a qual Gabriel ainda é e será, por longos anos, um de seus maiores representantes, parece ter provocado um efeito reverso no rapaz… O bico de sua prancha, hoje, aponta para outras veredas e, para nós, que estamos acostumados a acompanhar o tour e tudo que o envolve, já é possível escutar, aqui e acolá, certos comentários, velhos conhecidos nossos e de Mick, sobre a nova fase do surf de Gabriel após a precoce e, para mim, injusta eliminação na Gold Coast… Repetitivo, mecânico… 
Ora, Gabriel é um astro que brilha num céu sem atmosfera… Intuitivamente, ele, sem perder a fome competitiva, tem alterado a linha do seu surf… Há um certo recolhimento da inventividade, tal qual fomos acostumados a reconhecê-la nos últimos anos, para uma certa tendência pela repetição dos movimentos, pela supressão do ruído… Mick, embora se encontre a um passo de retirar-se para além das imposições do circuito, encontrou o seu herdeiro, onde menos se esperava… Não duvido que, em alguns anos, a linha de Gabriel se encontre balanceada pela contenção minimalista à medida, que sem soluços os sobressaltos, o movimento entre a base e o lipe seja cortado por um áreo cujo nome somente será conhecido depois de ele nomeá-lo…
Que a tradição permaneça…