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sábado, 18 de junho de 2016

O texto não publicado na Fluir...

Há cerca de quatro meses, Adrian Kojin, à época editor da Fluir, convidou-me para escrever um artigo para a revista que dirigia. Hesitei em aceitar num primeiro momento, mas, diante das prerrogativas e da gentileza do camarada, dei tratos a bola. Afinal, publicar um texto na Fluir seria um acontecimento na minha vida, talvez um dos momentos mais altos da minha carreira… Coisas de surfista… Embora, não tenha pedido autorização ao Adrian, reproduzo o email dele em que propunha as balizas do texto que eu deveria escrever. Dizia ele:

"Oi João, o texto não será alterado, a não ser para alguma correção factual previamente concordada entre nós. Quero sua opinião, com seu estilo, falando o que quiser. Pensei em algo como a visão sua sobre o atual Tour Mundial, uma panorama da experiência de ser um brasileiro "torcedor de surf" na era da WSL, Brazilian Storm, transmissões online de alta qualidade etc etc. Para contexto seria bacana situar quem você é, seu envolvimento com o surf, trajetória, profissão/compromissos atuais, atuação com blogueiro, trocas de impressões com caras como por exemplo o Julio Adler... um pouco meio como acontece no seu blog. O interesse que vejo nisso é levar ao conhecimento dos leitores que existem "torcedores" como você que, sem querer menosprezar qualquer outro, levam essa interação com o surf de competição para um patamar diferenciado, onde paixão e razão juntas geram uma visão única que merece ser compartilhada (o surf é o encontro do homem consigo mesmo e com a natureza e… a competição, o palco onde o tempo suspende e os nervos, somados à coragem, separam crianças dos adultos… A vida é um teatro, caro Adrien, e o surf competitivo proporciona um espetáculo completo… Se soubéssemos entender que há muito para além dos estereótipos sobre surfistas, poder-se-ia criar canais de comunicação poderosos para deixar ao mundo um legado de respeito, cuidado e amor à natureza…). O tema poderia ser exatamente esse "Torcedor de Surf". O que você acha? Caso não se interesse por esse, fique totalmente à vontade para dizer não e sugerir outro. Não quero limitar suas possibilidades, mas algo entre 30  e 40 mil toques poderia preencher umas seis duplas com boas fotos acompanhando.

Abs.,

Adrian”


Posto isso, para quem tiver vontade… E em homenagem ao Adrian…


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O mote

Os últimos anos encenaram, no surf brasileiro em particular e mundial no geral, o surgimento de um fenômeno cujo impacto mudou para sempre aquilo que conhecíamos sobre o universo de baterias de trinta minutos, pranchas e ondulações. O Brazilian Storm exigiu, e ainda exige, de nós, quem buscamos sempre materializar a linha imaginada com a parede que se abre à nossa frente, um enorme esforço de compreensão para entender como e porquê, em menos de cinco anos, o Brasil tornou-se o celeiro da avant-garde do surf mundial. Cada um encontra uma maneira de entender as razões dessa revolução. No meu caso, a minha memória dá o tom para os acontecimentos a fim de encontrar a linha e o traçado que alinhavam uma história, para lá, de conhecida.

Quando eu acreditava ser Ipanema a melhor onda do mundo.

No limiar da década de setenta e início dos anos oitenta, qualquer menino que morasse numa cidade banhada pelo mar, poderia encontrar-se, em algum momento, com surf e o transformá-lo numa paixão. Para minha família, de intelectuais e artistas, o meu envolvimento com a praia não foi, confesso, dos mais fáceis. Àquela época, os estereótipos e preconceitos sobre os camaradas de cabelos compridos, com muitas horas de vôo nas areias de Saquarema e do Arpoador, não ajudaram muito a convencer os meus pais a dar-me o dinheiro para a minha primeira prancha: uma monoquilha vermelha enorme, da Lightin Bolt, que precisava, de pelo menos, três pares de braços para atravessar a faixa de areia que separava a Av. Vieira Souto das águas geladas, com ondas de formação duvidosa que quebravam em frente ao Posto Nove em Ipanema. 
A permissão de surfar apenas no fim de semana era, vez ou outra, transgredida nas tardes livres em que meus pais se encontravam longe de casa, mergulhados no trabalho. O desejo de passar horas no mar valia o risco e, sem saber, nascia em mim a certeza de que pegar onda também compreendia um modo de vida, uma maneira de estabelecer-se diante do mundo, dos seus e, sobretudo, da natureza. O nome do negócio, na fase heróica da minha aprendizagem, era surfar uma parede pela primeira vez e escapar do surf reto nas espumas. Lembro-me dessa fase como um estado de concentração plena na decodificação dos movimentos do meu corpo e da mecânica das ondas. O mundo ao meu redor não importava muito, embora a bolha criada por mim fosse rompida pela conversa com os mais velhos à beira do mar. Éramos tão poucos surfistas entre o Leblon e o Arpoador que três ou quatro meninos a dividirem uma prancha por longas horas, numa disputa para ver quem conseguia, sobre ela, permanecer mais tempo em pé, provocavam olhares sempre generosos dos camaradas com mais idade e experiência. Asim me lembro, talvez assim, de fato, não fosse. Fazer o quê? A memória, quase sempre, é generosa pela sua capacidade de apaziguamento… Na minha arqueologia do passado, lembro-me sempre de dois nomes que ganhavam corpo e densidade quando o assunto, invariavelmente, recaia nos surfistas que eram os modelos a serem seguidos: Cauli Rodrigues e Pepê Lopes.
No início da década de oitenta, os corações eram, pelo que lembre, divididos por esses dois camaradas, cujas formas de expressarem-se sobre uma prancha e, suspeito, diante da vida de competição tornava-os face e contra-face, água e vinho. O primeiro, obstinado em treinar diariamente, em busca dos instrumentos necessários para aperfeiçoar a sua arte. Sim, Cauli era um artista daqueles capazes de interromper a respiração de quem, por acaso, o visse de cabeça para baixo em uma de suas patadas de backside. Vez ou outra, aventurava-me a cair no Arpoador, território inóspito para quem não era local daquelas veredas, embora o meu meio metro de corpo, mal equilibrado naquela prancha de cerca de duzentos metros de cumprimento e quinhentos quilos de peso, provocassem certa tolerância entre os mais velhos. Assisti a Cauli inúmeras vezes abrir os trabalhos, ainda com o sol a nascer. Havia, no camarada, uma seriedade, uma obstinação, uma fome que, confesso, demorei a ver novamente em um surfista brasileiro que estivesse determinado a vencer campeonatos. Nunca troquei sequer uma palavra com Cauli Rodrigues porque tinha por ele enorme respeito e também certo temor. Em muitas sessões em que me debatia no inside para tentar percorrer mais de dez segundos numa parede, era possível vê-lo, sem sorrir, com olhos de caçador a espera de conseguir na remada ou no grito a preferência numa longa esquerda iniciada junto a pedra. Cauli era o rei do pedaço, o rei de fato e de direito. 
Pepê, por sua vez, era o oposto; pelo menos, era assim que me lembro do camarada de sorriso fácil. Ganhou um monte de campeonatos, foi sexto lugar numa etapa em Pipe - imaginem o que esse feito provocou na imaginação de um menino que acreditava ser o Hawaii um lugar onde habitavam apenas super-heróis. As histórias ao redor de Pepê advinham de outras matrizes, diferentes daquelas do homem que dobrava o vento no Arpoador. Construiu-se, rapidamente, o mito do talento nato, do rapaz que fora campeão de hipismo, surfista de notável qualidade e, posteriormente, um astro que brilhava num ar sem atmosfera no vôo livre.
Encontrei Pepê Lopes mais de uma vez, fosse no mar, fosse na areia. O sorriso constante apenas tornava mais mágico o que ele fazia sobre uma prancha. Quando ouvi, pela primeira vez, de um amigo dos meus pais, surfista das antigas, que o melhor surfista do mundo era quem melhor surrasse Pipeline; soube, pela primeira vez, quem era Gerry Lopes. Depois de assistir alguns vídeos das performances daquele que, até hoje no meu coração, é o mais incrível surfista da história; tenho a impressão de que Pepê, cujo sobrenome deve indicar algum parentesco, senão de família, mas, sim de alma, com o dono do Litoral Norte do arquipélago
Não havia, é verdade, ruído na linha do camarada. Um movimento encaixava no outro, sem muita força, sem que as águas explodissem no lip de modo desordenado e deselegante. Com Pepê, descobri que não se deve lutar contra a onda, que era possível harmonizar os movimentos dos braços com o zigzague da prancha. O mundo, então, se abria, quase no mesmo tempo e espaço, num campo infinito de possibilidades. Não havia um modo certo e outro errado, um radical e outro de alma. Havia, isto sim, a utopia do encontro dessas duas escolas que, menino, materializei no surf de Cauli Rodrigues e Pêpe Lopes. O surf , à medida que crescia, tornava-se complexo e eu, àquela época, desenvolvia a minha “linha" com certa dificuldade, característica dos primeiros tempos da aprendizagem, enquanto eu sonhava surfar com a falsa displicência de Pepê e a força descomunal de Cauli. Nasciam, ali, dois dos principais heróis dos últimos anos da minha infância.

O sonho de um competidor frustrado.

A década de oitenta, no Rio de Janeiro, foi tomado de assalto por uma marca de surf e por um surfista, cujo nome lembrava uma onomatopéia e o sobrenome remetia ao falso parentesco com um presidente da República. Company e Dadá Figueiredo foram os donos do pedaço na década de oitenta. A primeira tinha a equipe mais forte entre todos que, àquela época, se dedicavam a patrocinar surfistas - um fenômeno relativamente recente e cuja força se explicava, pelo menos comercialmente, para criar modelos culturais, materializados em produtos de consumo, que determinavam, quase sempre, quais seriam os presentes de aniversários de um cem número de adolescentes cariocas de classe média. O surf encontrava-se, pela primeira vez, no Brasil com a sua vocação de esporte de massa. É verdade que, nos anos oitenta e, por que não nos anos noventa, isso não era ainda um acontecimento nacional. Parecia, isto sim, um movimento de feições regionais, em tese, de endereço e registro civil no nosso litoral. Aqui e acolá, surgiam equipes competitivas e não era raro que os nomes de alguns surfistas fossem seguidos pelos nomes das praias em que eram locais: Tombo, Olivença, Ferrugem… O curioso, contudo, é perceber que a expansão das fronteiras para além do Tejo, do rio da minha aldeia, não tornavam os novos territórios completamente desconhecidos. Era possível que todos ali se conhecessem, que cruzássemos uns com os outros o tempo todo. O espaço parecia-me bastante comprimido. Talvez pudéssemos explicar o surgimento da nossa tribo, em plena década de oitenta, justamente porque existia uma identificação natural entre nós, nossos gostos e nossos movimentos de afirmação.
Suspeito mesmo que o trabalho corajoso e muito ousado daqueles que se dedicaram a divulgar o surf nas mídias daquele período contribuíram muito para fortalecer esse processo que aumentou consideravelmente o número de cabeças na arrebentação e, por isso, obrigavam-nos a buscar praias mais distantes dos grandes centros… Mais ou menos na mesma época, o Litoral Norte de São Paulo, a Zona Oeste do Rio de Janeiro, as praias do Sul de Santa Catarina e os fundos de pedra do Nordeste começaram a receber surfistas, com suas capas de pranchas, de todos os lugares… Assistíamos ao Realce na televisão aberta, liamos revistas de surf, sabíamos os nomes dos bichos soltos da Australia, dos Estados Unidos e do Havaii… Mais impressionante: éramos capazes de reconhecer o estilo de cada um desses camaradas com a velocidade de um raio. Havia um modo de ser, uma maneira de vestir, um repertório minimamente exigido para quem ousasse passar um tempo na praia, em debate caloroso, numa defesa desse ou daquele pico; desse ou daquele surfista. Escutávamos as músicas que animavam os clips dos campeonatos editados pelo Realce, imitávamos os grandes, ou pelo menos tentávamos, tínhamos orgulho de conhecer algumas pessoas que movimentavam corações e mentes no intervalo de areia que separava Joaquina de Paracuru.
Havia, naquele tempo, um esforço para consolidar uma indústria. Muitos desejavam encontrar um meio de sobreviver do surf, ora como competidor, ora como editores de material impresso ou de audio visual, ora como empreendedores que ambicionavam trabalhar com aquilo que amavam. Até aqui, tudo certo e completamente justificável. Se eu tivesse talento competitivo, ou idade para trabalhar e empreender; certamente estaria nas trincheiras abertas pelo primeiro momento em que o surf, a despeito de todas as dificuldades, reivindicava o seu lugar ao sol. Para o surfista comum, no entanto, o efeito colateral era sentido numa certa animosidade entre os camaradas no line up. O localismo ganhava força e a condescendência de outros tempos era substituída por certa hostilidade que, para mim, era muito estranha e rompia a imagem idílica do surf construída no tempo da infância. 
Há algo de peculiar no modo como a massificação opera. Quando a onda chega, por estranho movimento das águas, somos levados a acirrar identidades para reagir contra a inevitável padronização de comportamento e referenciais que teimam em dirigir os nossos desejos, o nosso modo de viver. Havia muitos circuitos profissionais e amadores, etapas do circuito mundial aportavam em terras brasileiras e camaradas que cresceram ao meu lado tornavam-se anúncio de página inteira de uma importante marca. O nascimento da espetacularização da vida anunciava-se no mundo de que eu fazia parte e o surf, como sabemos, não permaneceu imune aos novos tempos.
O nome do negócio era claro e, possivelmente, o homem que vislumbrou o futuro foi um homem, de baixa estatura e enorme coragem para ondas de consequência. Roberto Valério, caso não me equivoque pela imprecisão, liderou a melhor equipe de surf vista por um adolescente carioca na turbulenta década de oitenta. Os meninos e meninas eram inacreditavelmente talentosos. Ostentar uma camiseta branca com a inscrição Equipe Company, em letras garrafais, acima do logo da marca significava que você tinha uma espécie de selo de qualidade, um traço capaz de diferenciar os adultos das crianças. Modelo… estávamos diante de modelos… As histórias que escutei na época e que eram relembradas pelos inúmeros camaradas, cujas vidas se cruzaram com a de Valério, bem poderiam animar alguém a dedicar-se a descrever esse personagem num belo livro ilustrado ou num documentário repleto de depoimentos e memórias. Lembro-me de encontrá-lo em Geribá, sob um guarda-sol, cercado de amigos, a contar casos sobre o Havaii, os donos do arquipélago, a coragem desse ou daquele surfista que enfrentou, sem medo, a grande onda da baia. Perdi uma manhã de boas ondas, sem muita gente na praia… Mas, sejamos francos, há muito pouca coisa melhor do que ouvir uma boa história sobre os nossos ídolos.  
Embora Valério não fosse, exatamente, uma pessoa de enquadramento fácil nessa ou naquela categoria justamente porque a sua personalidade e suas habilidades tornavam-no inclassificável, ele orquestrou, com rara capacidade, a condução de muitos dos desejos  existentes entro os surfistas comuns, de gente como eu que estava nesse jogo comprimida entre o prazer de estar sobre uma prancha e a certeza de que havia uma geração para espalharmo-nos. No bojo desse processo em que treinar, ganhar ritmo, saber ler uma bateria e, sobretudo, dedicar-se a ganhar campeonatos; uma personagem nascia com a capacidade de tornar-se uma espécie de divisor de águas ou, segundo acredito, o primeiro catalizador daquela utopia que embalava os sonhos do menino, orgulhoso proprietário de uma prancha vermelha com um raio amarelo a acompanhar a retidão da longarina.
Dadá Figueiredo foi um raio que cortou o céu azul no meio da tempestade de referências construídas pela primeira revolução industrial do surf brasileiro. Nele, encontravam-se, mesmo que o camarada não soubesse disso completamente, muitas das tensões que animaram aquela época. O estilo inconfundível e arduamente imitado por todos nós, com o braço levemente pendido, e a ânsia de tornar cada manobra mais violenta do que a de seus pares, rapidamente alçaram o rapaz a categoria de ídolo. Dadá Figueiredo era o camarada, àquela época, que um jovem adolescente gostaria de seguir. Bom, pelo menos, aqueles da minha geração, que viviam em terras fluminenses.
O surf futurista do rapaz era acompanhado por uma revolta, por uma raiva comportamental que encontrou enorme ressonância nas areias das praias cariocas e, como sabíamos, do enorme litoral brasileiro. Aqui, importa-me menos uma análise da psicologia pessoal, a busca dessa ou daquela razão. Em tese, interessa-me, isso sim, buscar entender por que, de repente, milhares de jovens, todos orientados pelas marcas e por modelos de comportamento, recusaram, de algum modo, participar desse processo iniciado nos primeiros anos da década de oitenta para aderir ao surfista de pranchas grafitadas, com inúmeras menções ao universo punk. Cá com meus botões, suspeito que, de um a maneira bastante peculiar, o chamado de Dadá Figueredo representou um reencontro com um espaço algo esquecido do surf, possivelmente sufocado entre um campeonato e outro, entre um treino e outro. Dadá personificava algo daquela aura ao redor do surf de Pepê Lopes. O surf era de matar, medido por uma consciência corporal e uma força de deixar qualquer um de nós estupefatos diante do que víamos. Contudo, ele também representava no seu surf algo contrário à padronização, num claro movimento de resistência a favor da naturalidade da expressão, do desejo, contraditoriamente dialético, de não participar daquilo. A insurgência do surf encontrou em Dadá Figueiredo uma sobrevida. Quem teve a oportunidade de assisti-lo durante um campeonato, o que fiz inúmeras vezes, pôde medir a capacidade de ele movimentar paixões. Nunca, até recentemente, vi um surfista ser alçado a categoria de ídolo como Dadá foi durante a época em que mandou tudo às favas e tornou-se porta estandarte do Necrose Social. Para mim, as heranças de Cauli Rodrigues e de Pepe Lopes encontraram naquele camarada, pela primeira vez, uma forma de convivência. Se isso não ocorreu de modo pacífico, isso… bem… isso é um outro problema.

A insistência do fluxo das águas

O problema de refazer o caminho da memória é ser capaz de conviver pacificamente com o fluxo que esse movimento impõe. Nem sempre somos hábeis o suficiente para contemplar todos os que contribuíram para a construção daquilo que nos transformamos hoje. Guilherme, Vitor, Peterson, David, Piu, Jojó, Tinguinha, Renan entre muitos outros deveriam ser lembrados, por mim, com a honra que merecem e, sobretudo, com o respeito que tenho por eles. O problema é justamente saber que a história do surf brasileiro, no que tange o universo de competição, não constitui o mote que anima esse texto. Aqui, de modo fragmentado e algo caótico, busco ordenar, pelo prisma pessoal, o mosaico que compõe o encontro de um surfista comum, alheio às competições e ao universo da mídia especializada, com a bela história que teve o surf brasileiro como protagonista. 
O passo seguinte, nessa toada, deu-se em 1990. Já havia mudado com a minha família para São Paulo, movimento também realizado por alguns dos meus amigos cariocas na última década do século XX. Coisas do mundo do trabalho, suponho… A praia já não se encontrava à frente de um leve levantar de olhos, mas era incrível que a fome pelo mar também estava por todos os cantos da grande cidade. Não tardou para que eu encontrasse quem, por qualquer motivo, pusesse as pranchas sobre o rack e cantasse pneu pela serra em busca das ótimas ondas do litoral paulista.
A nova década abria-se em diapasão. De um lado, fui apresentado à Maresias, Paúba, Félix… Quem conhece, sabe o que eu digo… Exceção feita ao Canto do Moreira e ao Maluf, lembro-me que era possível surfar, com certa tranquilidade, em qualquer uma das praias que banhassem o estado de São Paulo. Concomitante às minhas descobertas, o surf de competição no Brasil dava importantes e firmes passos rumo à internacionalização, embora ainda não fosse muito fácil para ninguém, além das fronteiras delimitadas pela nossa tribo, ter notícias sobre o que acontecia além mar.  Os campeonatos nacionais perdiam força e cediam lugar para as etapas do WCT e do WQS. Assistíamos aos campeonatos com um certo delay, naturalmente provocado por quem, heroicamente, esforçava-se para trazer as gravações das etapas do tour e, posteriormente, as editavas a fim de serem apresentadas na televisão. Deus abençoe Antonio Ricardo e Ricardo Bocão… Deus os abençoe… 
A confluência das águas, nesse tempo, era animada por dois camaradas. Mais uma vez é incrível perceber como o surf brasileiro possui, na sua base, a composição do duplo… Fábio Gouveia encheu-nos de esperança com o título mundial de 1988. O primeiro grande resultado dos nossos, além daquele infernal sexto lugar de Pepê, a tomar o nosso corpo de uma certeza: estamos chegando, estamos chegando… Na contra-face, encontramos Flávio Padaratz, jovem de Santa Catarina, quem surfava o fino da bossa. Dois talentos incontestáveis, dois camaradas de boa índole, dois dos mais importantes desbravadores da história do surf brasileiro. Eu, por minha vez, perdi as contas de quantas vezes, numa roda de amigos, defendi a preferência por um deles, numa espécie de luta renhida sem vencedores. 
Tomado pela certeza de que o tempo se fazia urgente, lancei mão de uma semana de aulas na escola, contra todas as caras feias de meus pais, e fui ver, pela primeira vez, Fábio Gouveia e Flávio Padaratz em ação. E, melhor, numa etapa do circuito mundial: o Hang Loose Pro, no Guarujá. A ilha estava abarrotada, especialmente Pitangueiras, local em que tudo ocorreu. O fenômeno da massificação, arduamente sentido por mim quando da primeira fase de minha adolescência no Rio de Janeiro, já me era conhecido. Novidade, foi assistí-lo para além do limites da minha cidade natal. Eram muitas pessoas sobre a pedra, na areia, ao redor do enorme palanque. Ídolos internacionais, cobertura da imprensa especializada. Os campeonatos, parecia-me, ganhavam novo corpo… e eu somente queria ver, com esses olhos que a terra há de comer, os dois camaradas, quase da minha idade, enfrentarem em pé de igualdade os grandes…
O mar não estava, confesso, dos melhores. Em tese, parecia-me que o Wang Loose Pro, hoje distante no tempo e com certa rodagem, estava muito mais próximo de uma etapa da divisão de acesso do que de uma parada da divisão de elite. E saibam que já vi o Canto do Maluf quebrar com pompa e circunstância… Pelo que lembre, Flávio Padaratz não teve uma vida muito longa nesse campeonato. Coisas da vida… Fábio Gouveia, por sua vez, fez chover num dia de sol quente e céu azul no litoral paulista. Não conseguiria dizer exatamente como o rapaz ganhou aquele campeonato tampouco descrever, com exatidão, a linha de seu surf ou as pontuações de cada uma das baterias vencidas pelo surfista de Baia Formosa. 
Lembro-me apenas de ter 17 anos de idade, de estar com os camaradas, de surfar em meio a milhares de cabeças, cada qual a disputar um balanço no mar como se fosse um copo de água no deserto… Lembro-me, sobretudo, de ter chorado quando a sirene tocou e Fábio Gouveia venceu Matt Roy na final. Foi a primeira vez em que chorei ao fim de um campeonato de surf. A praia veio a baixo, as pessoas gritavam e abraçavam-se à medida que Fabinho era levado ao palanque. O talento havia vencido. O talento puro daquele jovem encontrava, pela primeira vez diante dos meus olhos, o mesmo reconhecimento que outrora dediquei aos meus ídolos de criança. Fabinho, quatro anos mais velho do que eu, era acompanhado atentamente por mim com a mesma reverência que meus olhos seguiam Cauli Rodrigues quando ele resolvia mostrar para o mundo que o Arpoador era seu, somente seu…
Voltei do Guaruja com sonhos do título mundial, com a certeza de que qualquer um poderia conseguir qualquer coisa. Enchi-me de orgulho, enchi-me de esperança… Tudo no Brasil daquela época, acreditássemos ou não, projetava a tese de que chegara enfim a nossa vez. Era um novo tempo, era a vez de o mundo saber que estávamos ali para ganhar e Fábio e Flávio representavam, para mim, a certeza dessa possibilidade.
  
O surf pelos braços de minha filha.

Por quase uma década, o surf tornou-se para mim, quem morava em São Paulo, uma atividade que precisava encontrar lugar na difícil agenda da máquina mercantil. Quando podia ou encontrava tempo, escapava para uma sessão com os camaradas. O surf brasileiro continuava a sua trajetória no circuito, com alguns ótimos resultados, embora o título ambicionado teimava em não se concretizar. O meu afastamento da força gravitacional do surf de competição foi concomitante ao surgimento das televisões fechadas, a uma certa crise no setor e, sobretudo, ao reinado de Kelly Slater.
A história fazia-se diante de todos. A supremacia do camarada da Flórida era tamanha que, confesso, a chegada de Andy Irons pareceu-me um sopro de novidade e tranquilidade no meu coração. Sempre pendi, sem muita explicação, para o terreno da subversão da ordem estabelecida. Fosse na vida, fosse na escolha de quem admirasse; eu sempre me encantei com a contra-cultura, mesmo que ela, em algum momento, tenha tornado-se establishment. E Andy Irons, com sua língua indomável, representava, com extrema dignidade, uma geração de surfistas que não estavam nem ai para o que ja fosse dado como certo. Estavam lá para estremecer certezas e, pasmem, estremeceram.
Embora reconheça que Slater é o maior surfista de todos os tempos, embora saiba que o seu surf é uma aula de leitura da onda, embora saiba que sua história lembra e, muito, as velhas narrativas míticas; eu, recolhido em minha casa, achei que o período do auge de seu reinado algo monótono… E, pasmem, acho que ele também achava isso… Afinal, nós sabíamos que ele ganharia,  pois tinhamos certeza de que não havia adversário à altura de seu talento. Por menos aceitável que seja para quem, como eu, tem um respeito sem fim pelo feitos do Extra-terrestre, essa reposição constante do igual diminuiu muitíssimo o meu interesse em acompanhar o circuito. Afinal, acredito que o surf de competição é o palco em que vemos homens debaterem-se contra os seus demônios, contra a natureza e contra os seus limites. Kelly Slater, durante boa parte de sua carreira, pareceu-me, desde sempre, imune aos demônios, à natureza e a limites intransponíveis. Certamente, isso foi bom para a construção do mito, para os negócios e para movimentar paixões, mas não creio que fosse suficiente para manter-me vinculado, tal qual estive em outros tempos, ao tour.
Com a vida a correr, não tardou para que me percebesse mais velho e, consequentemente, distante de meus interesses de juventude. O corpo transforma-se, diria o sábio latino, e a alma segue-lhe os passos. O nascimento de minha primeira filha e o seu pedido, aos sete anos de idade, para que eu lhe comprasse uma prancha de surf repôs o rio em seu curso. Diferente de outras épocas, embarquei nesse pedido com enorme paixão e, das brincadeiras com o pai à beira mar, não tardou para que o seu talento despertasse e, com ele, velhos conhecidos voltassem a frequentar a minha casa; isto é, os bons e queridos campeonatos de surf…
Júlia era uma surfista notável para idade, de modo que dediquei-me, com afinco, em incentivá-la a seguir esse caminho. Por um tempo, a diversão com o pai animou-a bastante a participar, aqui e acolá, de alguns campeonatos locais. Ela teve bons resultados e, quando a coisa pareceu-me séria, resolvi levá-la para assistirmos juntos a uma etapa do Rip Curl Grommet Search, na Joaquina, uma praia cujo nome é capaz de alimentar a imaginação de qualquer um que, pelo menos uma vez, sonhou em surfar ondas de qualidade no Brasil. Se o motivo era pessoal, a consequência dessa viagem mudou a minha vida para sempre.
O ano de 2009 promoveu o meu primeiro encontro com aqueles surfistas que, anos mais tarde, se transformariam em importantes  representantes do Brazian Storm. A praia de águas geladas refletia o céu de azul profundo. Aquele campeonato permitiu que eu visse, numa mesma faixa de areia, Felipe Toledo, Caio Ibeli, Jessé Mendes e, pasmem, Gabriel Medina; todos com menos de dezesseis anos de idade. Essa etapas costumam ser bastante longas, com baterias mescladas entre as categorias e longos períodos de espera para os competidores. Enquanto Júlia se divertia no mar com a certeza de não querer participar daquilo, a minha frustração era, paulatinamente, substituída por um sentimento de perplexidade diante do que testemunhei naqueles dias. Tenho uma espécie de memória difusa daquela viagem. Lembro-me de ver Peterson Rosa, vestido com calça e sapato, na areia, sob um guarda-sol, com alguns amigos. Peterson Rosa… Para mim, o camarada mais obstinado que vi no surf brasileiro depois de Adriano, herdeiro legítimo da tradição defendida por Cauli. Não deixa de ser curioso que o surfista de Matinhos, como eu, estivesse a assistir àquele campeonato, justamente o palco em que a nova geração dava, pela primeira vez com força, os primeiros passos daquilo que, hoje, sabemos ser a tempestade, a tempestade…
Confesso que a minha atenção estava na categoria principal, onde os meninos se digladiavam com estranha determinação. Não demorou muito para que eu reparasse em Gabriel. O menino era tão forte e ousado que cada rasgada parecia uma faca na manteiga aquecida. Ele estava, em Florianópolis, com o pai. Estavam sempre juntos e Charles  Medina acompanhava tudo de perto à medida que os dias avançavam. Um após o outro, os adversários do garoto caiam. Não sei se vocês já passaram por isso alguma vez na vida, mas, nesse campeonato, eu tive a completa certeza de que estava frente à frente com um fora de série. Há, quando isso acontece, um misto de resignação humilhante, característica de quem sabe ser impossível reproduzir em si mesmo o talento do outro, e admiração sem fim. Conheci muitos surfista no início de carreira, alguns deles chamaram-me a atenção, mas nada se compara com aquilo que Gabriel provocou.
Em suas baterias, a minha atenção estava sempre dividida em acompanhar os acontecimentos no line up e aquele homem, quem sempre se encontrava sentado em uma dessas cadeiras de praia dobráveis. Charles olhava tudo com muito cuidado. Aliás, era impressionante a imensa presença de pais e treinadores ao redor das crianças. Mal começávamos a trilhar o caminho que nos levaria, definitivamente, a ver o surf como um verdadeiro fenômeno de massas, e já era possível ver que os arredores de um campeonato pouco lembrava os espetáculos de Rock promovidos por Dadá Figueiredo e seus asseclas. Estávamos diante de uma nova fase, com desconhecido contorno. O surf já construíra as bases para a revolução que tomaria, dali há alguns anos, o mundo de assalto. É claro que encontrávamos de tudo nas areias: técnicos gritando com os seus pequenos atletas, pais que revendiam algumas roupas dos patrocinadores para aumentar a renda familiar e muita gente que estava ali apenas para dar suporte àqueles surfistas de corpos minúsculos. Charles Medina, particularmente, estava ali por outros motivos. Eu suspeito até hoje que ele era o único, entre nós, consciente do talento do seu menino. Bastava apenas o rio seguir o seu curso e… tudo tomaria lugar no universo em caos…
A final da categoria principal anunciou-se com Sidinei Guimarães, Caio Ibeli, Jessé Mendes e Gabriel Medina. O que vi naquela bateria foi a mais insistente marcação de um surfista sobre o outro desde que acompanhava os campeonatos locais no Pontal do Leblon. Gabriel colou em Jessé e era possível, da areia, escutar a força com que braços e pés batiam na água em busca da prioridade. Assisti a todas as baterias dessa categoria e, até aquele momento, não havia ainda pressentido a sombra de Cauli Rodrigues encobrir o menino de Maresias. Talvez a simples presença de Peterson Rosa na areia tenha provocado alguma interferência nos ares do campeonato. Vai saber…3526Medina não estava para brincadeira, isto é certo. Não errou uma manobra sequer, surfou como sempre, mas surfou também para dizer ao mundo que reivindicava para si os direitos por aquelas ondas.
O duplo desfazia-se para ver nascer uma identidade única. O filho de Charles parecia personificar a confluência de muitas gerações de surfistas brasileiros. Técnica, talento, determinação e força… muita força… Às vezes, isso acontece e, às vezes, é preciso ver para crer. Muito se diz a respeito das possíveis semelhanças entre Gabriel e Slater, sobre as suas trajetórias… Ainda é cedo para prever o futuro, embora o passado aponte que há mais coisas em comum entre eles do que aceitamos existir. Ambos parecem ser constituídos por uma espécie de amálgama capaz de tornar comum o que, outrora, era próprio. Assisti, naquele campeonato ocorrido seis meses antes da vitória no WQS da praia Mole, à ante-sala do que aconteceu alguns anos depois. Hoje, por mais que admire e respeite o surf do filho dileto de Maresias, torço para que surja um outro Andy Irons por aí. Se ele for brasileiro e, por acaso, chamar-se Ítalo, Felipe ou Adriano ficarei feliz pelos bons termos do surf de competição, onde homens lutam contra os seus demônios, contra a natureza e contra as suas limitações.

A subversão da web.

O maior chavão do era digital é que a web permite a qualquer um ter voz e no seu destino mandar. Por muito tempo, acreditei que essa verdade fosse, isso sim, uma farsa. O surf de competição já havia dado importantes passos no Brasil e qualquer um com mais de quarenta anos, quem tenha se dedicado, ainda menino, a lançar-se numa ondulação de mais de seis pés sentiu, direta ou indiretamente, os efeitos de suas transformações. A acumulação conquistada pelas últimas décadas carecia ainda de um último elemento para que déssemos o salto para a nova era. Para mim, foi justamente um instrumento alheio ao universo das ondas, pranchas e parafinas que preencheu os espaços vazios e  possibilitou uma outra relação de todos nós com o surf. 
A web tornou acessível para qualquer mortal assistir, ao vivo, campeonatos no outro lado do planeta, em tempo real. Agora, qualquer etapa pode ser vista e comentada com os camaradas no conforto de nossas casas. A democratização da matéria necessária para que a informação pudesse ser produzida estava, enfim, acessível. Somou-se a isso o surgimento de uma das gerações mais talentosas da história do surf mundial. O verão, como sabem, não se faz com uma única andorinha. Se for para valer, deve ser como uma tempestade em alto mar, que vareja tudo e todos sem piedade. Pois bem, isso aconteceu à medida que, inebriado pelo ocorrido na Joaquina, resolvi juntar-me aos milhares de comentadores anônimos que povoavam os sites especializados e, vez ou outra, arriscavam-se em blogs pessoais para dar tratos à bola.
A primeira decisão era assinar tudo o que escreveria com o meu nome, sem avatares ou apelidos; a segunda, caso encontrasse textos que admirasse ou escritores que julgasse bons não teria qualquer vergonha em escrever-lhes, fossem eles famosos ou não. Pois bem, iniciava, com certa imaturidade na escrita, as minhas peregrinações pelo sites e blogs que se dedicavam a analisar e informar as coisas do surf. Encontrei de tudo, confesso. Desde a maldição do press-realise, em que um texto parece cópia de outro, o qual, por sua vez, produziu-se a partir de um control C/control V tacanho de um terceiro, escrito, sabe-se lá por quê, sem muita imaginação; até gente que bem poderia fazer parte da mais fina confraria de escritores brasileiros. Talvez o mais significativo talento visto por mim tenha sido Júlio Adler, a quem conheci a partir de  uma menção de um texto dele presente em um ótimo blog, extinto há anos, chamado True Surf. Bem sei que a carreira do camarada iniciara-se antes, com passagem por importantes veículos de comunicação especializados em nosso mundo. Todavia, foi o meu encontro com o blog Goiabada que fez tudo mudar novamente. Faz uns anos, o sitio do Júlio trazia um índice onomástico no pé da primeira página. Lembro-me de ter lido todos os textos do Goiabada com enorme admiração pela escrita fácil e inteligente do camarada, quem, tempos depois, tornou-se meu amigo e companheiro de longos telefonemas interurbanos.
Arrisquei-me, animado com a influência indireta do Goiabada, a compartilhar as minhas opiniões na liberdade do fórum mantido pelo Waves. Quando achava oportuno, escrevia alguns textos e divertia-me com as conversas com os companheiros, quem, como eu, expressavam sem nenhum medo as suas idéias. Aliás, se há um preconceito que deveria ser rapidamente superado é aquele cuja razão prediz ser o espaço dos fóruns dos sites e das revistas um lugar selvagem e incauto. Pois bem, eu encontrei muita gente entendida no assunto, com memória e capacidade de clarear-me, com imensa generosidade, situações ou acontecimentos. Graças as críticas e elogios que meus textos provocaram, refinei o meu estilo, encontrei maneira própria de escrever. Do fórum, eu migrei para um blog; desse blog nasceu esse texto para a Fluir, auge de minhas atividades profissionais, ainda que não viva, e nem pretenda viver, nem do surf, nem da escrita. 
A cada ano, acompanhei o crescimento desse novo segmento  das mídia relacionada ao nosso universo. A popularidade do Brazilian Storm está, pois, intimamente ligada ao processos alimentados pela máquina do universo digital. À medida que as notícias corriam o mundo e um bando de gente consumia e difundia informaão sobre esse ou aquele feito, essa ou aquela manobra, esse ou aquele campeonato; a relação do público com seus ídolos também se alterava. Quando menos suspeitávamos, éramos próximos daquelas pessoas. Assistíamos ao vídeos produzidos para divulgação de suas carreiras; líamos suas opiniões nas redes sociais e torcíamos por eles como se fossem pessoas que dividiam conosco espaço na arrebentação. Tudo era rápido, instantâneo… A velocidade e a diversidade de cada postagem tornava muito difícil entender o que, realmente, acontecia. 
Suspeito que os primeiros a captarem as mudanças dos tempos, no que tange a qualidade das informações foram, numa sorte de reação inesperada, as edições impressas. Quando tudo indicava que as revistas acabariam e os textos rápidos e de fácil consumo tomariam conta de tudo, um movimento de reivindicação pelo volta do ensaio, da reflexão mais acurada invadia, sem piedade, as revistas de surf do Brasil. Para mim, um alento. Seja como for, havia se aberto um novo campo de debates, bastava iniciarmos o novo tempo. De algum modo, eu comecei a escrever sobre surf em meio a essa tensão. Ela animou-me a compartilhar com outros algo do campo de meus interesses pessoais e a água salgada ocupa, certamente, um lugar central nesse latifúndio.
O quinto império

Dois dias antes da etapa de Peniche, em 2014, resolvi, numa espécie de surto, comprar, por telefone, uma passagem aérea para Portugal a fim de assistir, acreditava piamente que aconteceria, ao primeiro título mundial conquistado por um brasileiro. O fato é que os adiamentos sucessivos da organização impossibilitaram-me de acompanhar o fim do campeonato, uma vez que me encontrava com uma agenda apertada no Brasil e precisava, com certa presteza, voltar para o mundo do trabalho. No entanto, eu pude ter tempo suficiente para ver, escrever e conversar com gente que conheci por aquelas veredas. De memória, recordo especialmente do almoço em companhia de Freddy P.; da longa conversa com Charles Medina em Baleal; do aéreo inacreditável de Slater; da sessão de Jonh Jonh em pico da Mota e, pasmem, de uma ondulação com tamanho, que quebrou em Nazaré durante a janela de espera.
Portei-me com um estranho senso de obrigação jornalística e, a cada evento, escrevia sobre aquilo a que assistia. Há muitas maneiras de narrar o tempo transcorrido, sendo possível escolher, a depender da sensibilidade do escritor, onde forçar as tintas, onde decupar os acontecimentos. De tudo que vi, certamente, foi uma manhã em Baleal que guardo intacta na memória. A ondulação quebrava com cerca de oito pés e eu havia chegado na praia muito cedo para acomodar-me, com tranquilidade, no café que se situa no canto direito da praia. O sol mal mostrara a sua cara e os serviços ainda se encontravam longe de serem iniciados. No mar, apenas Adriano. O título, àquela época, era-lhe impossível, mas e daí? Lá estava o camarada, uma onda após a outra, cravando a sua borda na água. O mar logo encheu de cabeças. Pelas dez horas da manhã, Slater e Gabriel chegaram. O frisson na areia era enorme. Algumas emissoras de televisão faziam-se presentes, homens, com certa idade, corriam desesperados pela areia atrás de um autógrafo, de uma foto. Encostado no carro, Adriano com a roupa trocada mexia no celular, alheio a tudo aquilo. Viro-me para ele e digo: eu torço por você. Ele ri, agradece e se vai um pouco antes do Extra-terrestre chocar o mundo com um aéreo 540.
Muito se diz, em verso e prosa, sobre a capacidade de Adriano manter-se sempre concentrado, focado. Todavia, vê-lo em estado de transe, arraigado no seu mundo, alheio àquilo que ocorre ao seu redor, é uma das maiores lições que o homem comum pode ter em vida. Ainda veremos o rapaz a conduzir palestras motivacionais para grandes executivos aqui e alhueres. Afinal, se há algo que me parece ser uma característica, quase exclusiva, do novo campeão mundial, é a certeza de que a sua coluna vertebral é banhada por titânio. Nada parece alterá-lo,  nenhuma situação adversa é, por isso, definitiva. Ele sabe qual deve ser a sua rotina de treinos, sabe que deve seguir em frente. Ganhou o título de 2015 porque subverteu a ordem das coisas e mostrou para o mundo que talento e trabalho devem conviver entre os surfistas da elite. Não sabemos o que leva ao outro, mas, em Adriano, cada conquista de seu talento revela-se pela capacidade descomunal de seu trabalho. Talento puro morre na praia, asfixiado; trabalho árduo, mas sem brilho, torna-se caricatura. Adriano concentra talento e trabalho em seu surf e, por isso, ganhou o caneco de 2015. Por muitos anos, ele estará entre aqueles que, com sangue nos olhos, não permitirão que as dificuldades da realidade permaneçam imunes ao desejo da vitória.

O epílogo.


Todo homem, algum dia, envelhece… Mas, no surf, idade não significa maturidade. No meu mundo, quem melhor conseguir equilibrar-se diante do adversário, de modo a transformar a sua fraqueza em força, receberá sempre a minha admiração. Aprendi isso com os meus camaradas, entre uma caída e outra num final de tarde. Aprendi isso porque  sou um surfista brasileiro. Nesse universo, o encontro entre o talento natural, trabalho perseverante e fome de vencer é capaz de enquadrarmo-nos como herdeiros da tradição que sustentou e sustentará o surf de competição no Brasil. A Tempestade chegou e sua força ainda é sentida com estranha perplexidade. E isso, confesso, enche-me de orgulho do nosso passado e de esperança no nosso futuro.

3 comentários:

Julio Adler disse...

Por uma dessas peças que o destino nos prega, comprei a ultima Fluir antes de embarcar pro Velho Mundo, exatamente pelo seu texto, que despertou curiosidade - e confesso, alguma empatia.

Lamento pelo triste e inesperado fim da revista mais antiga do nosso tão maltratado mercadinho.

Ainda tinha a esperança de ver a Fluir se erguer e tornar-se a revista que sempre poderia ter sido.

Fat Oss disse...

Muito bom artigo ! Ressalto porém que a praia de origem do Fabinho era a do Bessa, em João Pessoa, enquanto Baía Formosa era uma excelente opção no vizinho Rio Grande do Norte.

Julio Adler disse...

Cade voce, João ?