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sexta-feira, 24 de abril de 2015

Divagações

Texto Publicado em janeiro de 2015


O mote
Nesse verão, a despeito das chuvas que castigam o litoral norte paulista e movem a nossa comunidade para um belo e comovente exercício de solidariedade, é possível sentir uma mudança no ar... As areias estão cheias de pais e filhos, todos com pranchas... Gritos de incentivo, orientações sobre postura e longas argumentações a respeito da distribuição do corpo na prancha cortam o som sincopado do vai e vem das ondas... Muitos inspirados pela relação de Charles e Gabriel tentam repetir a fórmula mágica... Todavia, pais e filhos quase sempre, com raras exceções, são apenas pais filhos... O surf, mesmo sem prêmios ou glória, pode e deve ser um importante campo de interação entre nós e as nossas crias, não mais... É Importante não nos esquecermos disso, sob o risco de sermos impedidos de ver o que realmente vale nas duas horas diárias dedicadas a ensinar aquele corpo mirrado a equilibrar-se sobre uma prancha de surf... Alegria e admiração... apenas...
O interregno argumentativo
Faço parte de uma geração de surfistas, cuja adolescência transcorreu entre o final da década de 80 e o início dos anos 90. Aos mais novos, é difícil acreditar que, àquela época, ainda era bastante raro encontrar, nas famílias, um apoio sólido para quem decidisse seguir a carreira de surfista profissional. Existiam, é verdade, alguns casos isolados, pelo menos é assim que me lembro dos poucos e esperados campeonatos destinados à garotada. É verdade também que, volta e meia, algum incentivo surgia: uma prancha nova, uma viagem com os amigos para uma praia mítica em um litoral selvagem… Hoje, distante no tempo e, por isso, com certo embaralhamento da memória, acredito que se tratava mais de um empurrão para o mundo do esporte do que, propriamente, um consentimento para uma carreira de surfista.
Muito se fala dos tempos da contra cultura dos anos 70, do espírito de afirmação da primeira geração de surfistas brasileiros, de onde surgiram quem, hoje, ocupa o lugar das lendas do esporte. Gente de espírito sólido, quem criou as bases da industria, os alicerces do nosso modo de ver o mundo. A minha adolescência, tal qual imagino ter sido daqueles que circundam os 40 anos de idade, ficou algo comprimida entre a fase heróica e o super profissionalismo do novo século.
A sombra de Fábio Gouveia e Teco Padaratz, as histórias a respeito de Neco, quem acreditávamos fosse, quando adulto, o maior de todos e, sobretudo, o talento de Vitor Ribas invadiam os sonhos de um cem números de jovens, loucos pelo mar e sequiosos para seguir os mesmos caminhos abertos por esses camaradas, responsáveis por desbravar o circuito e cravar, pela primeira vez, em terreno sólido a nossa bandeira. Suspeito que a euforia por cada degrau alcançado não era compartilhado pelos nossos pais: felizes pela vida saudável dos seus filhos, mas muito conscientes, segundo seus medos, de que o surf não era propriamente uma carreira. Para mim, isso nunca foi, de fato, um problema, uma vez que, surfista de talento mediano quando comparado aos bichos soltos da praia, sabia o meu desejo não encontrar endereço na realidade. De todos os campeonatos que corri, não recordo de ter tido qualquer resultado digno de lembrança. Gostava, mesmo, de ficar com o bando, conversar sobre as ondas e as aventuras; gostava, isso sim, de viver na praia.
A glosa
Para a maioria de nós, cuja idade atravessou a barreira dos quarenta anos, a constituição de uma família e a consolidação no mercado de trabalho, por caminhos nem sempre claros, afastaram-nos daquela vagabundagem, somente identificada por quem, algum dia, passou o dia na praia sem hora certa de voltar para casa. Acontece que, por sorte ou milagre, talvez nós tenhamos a oportunidade de reconstituir algo desse tempo. Sabemos quando isso acontece e, como num átimo, aquele sentimento do passado projeta-se intensamente no presente. O resultado: um novo sopro de vida parece varrer tudo, tal qual uma tempestade em alto mar.
No meu caso, tudo revelou-se no instante em que a minha filha Júlia, hoje com quinze anos, insistiu, com extrema veemência, para que eu lhe comprasse uma prancha de body board. A imagem é vívida. Nós, em frente a uma dessas lojas do litoral em que se vendem tanto panelas como roupas de banho. Na vitrine, pranchas de isopor branco sobrepostas num pilha de cerca de um metro. O corpo teso, o olhar decidido. Dizia que desejava surfar comigo e não era capaz de destitui-lhe dessa idéia fixa. Ela tinha apenas três anos de idade e muita convicção.
Das primeiras caídas, lembro-me do medo de minha mulher, do sorriso no rosto da pequena a cada onda surfada. Não tardou para que lhe desse uma dessas pranchas de espuma, as mesmas que invadem as inúmeras escolas de surf do nosso litoral. Surpresa… No primeiro dia, ela estava em pé, corpo mirrado, braços abertos contra o vento, vestida com um óculos de mergulho, o qual, segundo ela, lhe protegia da água ardida do mar. Essa era a resposta que sempre dava aos muitos questionamentos do pai a respeito daquele inusitado apetrecho.
O talento da menina já era sentido nas praias, com frases de incentivo de estranhos, olhares curiosos e prognósticos entusiasmados sobre um possível futuro no circuito. Do meu lado, um orgulho sem igual e o início da crença de que talvez fosse esse, de fato, o caminho. Ao contrário dos meus pais, embarquei no delírio. Achava, aliás como acho hoje, que não haveria profissão mais legal no mundo do que aquela de surfista profissional. Não temia pelo sustento de Júlia, tampouco pelas dificuldades de uma vida nômade. Ao contrário, achava tudo isso muito bom. Algo meu se projetava, e acho que isso ocorre normalmente entre pai e filho, na vida daquela menina, bonita como ela só.
Logo, troquei a de espuma por uma de fibra. Dois patrocínios inesperados surgiram. A cada mês, diminuíamos o tamanho das pranchas. Lembro-me que iniciamos com uma 5,11, meses depois, Júlia já surfava com desenvoltura numa 5,5. Era lindo vê-la em direção ao mar, sentada ao meu lado no line up, remando junto comigo para passar a arrebentação. Oito anos. A conversa era de menina. Entre uma série e outra, falávamos sobre circo, novela e bonecas. A prosa somente era interrompida pelos meus gritos enlouquecidos quando ela se lançava sobre as onda, em um sutil zig zag, até a areia. Não sei precisar, exatamente, quando a brincadeira ganhou alguma seriedade. Mas sei que, um pouco por ela e um pouco por mim, uma outra intensidade tomou conta de tudo. Surfávamos no frio, com onda ruim, com vento. Nenhuma condição era adversa. Ríamos de tudo, da dificuldade de vestir o long, de dirigir molhado, da fome no fim de tarde. As sessões ganhavam contorno de treino… Algo havia mudado: eu, em constante sonho; ela, suponho, com o desejo de ficar mais perto do pai.
O encontro.
Aos nove anos, Júlia já tinha alguns resultados expressivos nos campeonatos caseiros. Já era reconhecida por todos que surfavam no Tejo, o rio da sua aldeia. Era hora de saber se aquilo era, de fato, possível. Convenci a minha mulher, sempre temerosa, que devíamos viajar para Santa Catarina a fim de ver uma etapa, patrocinada por uma grande marca, destinada exclusivamente para gurizada. Seria a primeira viagem que faríamos juntos, somente nós dois. Há anos atrás, eu tinha viajado para Joaquina e, desde então, não pisava naquela areia branca. Pelo que lembre, quando acabara de completar quinze anos, eu e os camaradas rumamos para o Sul em busca daquela onda… Miojo, barraca e o primeiro perrengue de uma trip interestadual. Foi ali que nasceu um novo modo de relacionar-me com o surf. Agora, pai e filha, passado e presente, recomporiam os caminhos de minha adolescência com a intenção de saber se Júlia daria continuidade ao sonho de menino do seu pai.
O campeonato foi, de muitas maneira, um ponto de virada. Foram dias intensos com bom surf e comida boa. Além disso, foi a primeira vez que vi Gabriel, Felipe e Jesse. Boa parte do dia, passei na areia a conversar com pais de competidores a fim de entender como funcionava, de fato, aquela máquina. Intervalava esses momentos com breves caídas no mar, eu e Júlia, ao lado do campeonato. A pequena já se enturmara com a garotada, mas havia algo, naquilo tudo, que lhe parecia estranho. À medida que os dias avançavam, eu deslumbrava-me com a novíssima geração do surf brasileiro enquanto Júlia pedia-me que saíssemos de lá, que rumássemos para as praias próximas a fim de surfarmos apenas nós dois, como, aliás, sempre fizemos
Acredito, hoje distante do tempo, que os pedidos da pequena foram motivados pelo enorme palanque, a praia cheia, o som alto, os gritos de dasagravo de um técnico com uma jovem que acabara de perder uma bateria e o depoimento de um pai cujas esperanças de sua família recaíam no corpo franzino de seu filho de doze anos… O ecos do profissionalismo faziam-se presentes, para o bem ou para o mal, e junto dele a consolidação do surf como uma profissão para muitos. De uma hora para outra, comecei a suspeitar que a companhia da Júlia no line up era algo mais valioso do que submetê-la, tão jovem, àquele universo. Se ela quisesse, se tivesse demonstrado real interesse de participar desse mundo, se tudo não passasse, como vejo hoje, de um desejo meu; talvez, digo talvez, valesse à pena.
Com três filhos, bem sei que cada criança tem um modo particular de expressar as suas vontades. Crianças nunca são iguais. Já encontrei gente miúda que, desde muito cedo, demonstrava um ímpeto para competição admirável. Identificar esse traço não é tarefa fácil para qualquer pai, sobretudo, se o talento despertar ainda cedo como algo fulgurante, capaz de obinubilar todo resto. No meu caso, o campeonato da Joaquina serviu para que reconhecesse o talento de minha filha como algo secundário… O que interessava a ela, mais do que qualquer outra coisa, era passar um tempo de vagabundagem com o seu pai, na praia, enquanto o dia corria e a noite se anunciava.
Muito provavelmente, a maioria de nós já é pai e, com sorte, viu e vê sua cria iniciar a paixão pelo esporte que tanto amamos. Afinal, os nossos filhos são a melhor companhia que podemos ter num fim de tarde ensolarado e disso não resta, pelo menos para mim, nenhum dúvida. Se, por algum instante, intuirmos que um talento se materializa durante as brincadeiras que compassam o vai e vem das ondas, recomendo, cada qual a seu modo, perguntar-lhes se eles desejam realmente participar de uma competição. O melhor é ser direto, mas não nos esqueçamos de manter os ouvidos e olhos sempre abertos; de um modo ou de outro, eles nos dirão o que desejam.
Ps: Enquanto escrevo, os gêmeos pulam ondas agarrados às suas pequenas pranchas... Entre uma caída e outra, um castelo de areia é construído à beira mar...

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