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sábado, 25 de abril de 2015

Reminiscências de um texto escrito em 2010

Na última quinta-feira (11/2) acordei mais cedo para levar meus filhos à escola. Quando cheguei em casa, entrei na internet para acompanhar Pena Pro Noronha 2010, motivado pelas notícias de que no dia anterior havia rolado um mar clássico, com ondas grandes e atuações antológicas.

Abri o computador no exato momento da bateria do niteroiense Bruno Santos e vi, ao vivo, ele surfar uma onda, com drop atrasado que lhe rendeu nota 10 unânime. Vi o replay algumas vezes e não conseguia acreditar no que havia visto.

O tubo parecia não ter porta de saída e a velocidade com que as placas de água caíam era proporcional à certeza de que Bruno Santos não conseguiria, definitivamente, sair ileso daquela situação em que se metera. No entanto, para a minha surpresa, com extrema simplicidade e leveza ele encontrou uma linha que me parecia impossível para conquistar a primeira nota máxima do campeonato.

Enquanto tentava sair do estado de perplexidade provocado por aquela cena e buscava organizar o pensamento com o objetivo de encontrar uma explicação racional para aquele acontecimento, uma série de lembranças sem qualquer aviso rompiam a vigilância de minha consciência para levar-me ao tempo de minha juventude.

De algum modo, eu parecia estar dentro dos livros de Marcel Proust, romancista francês que para muitos é responsável por uma das cenas mais intrigantes e memoráveis da literatura moderna. No caso, o personagem principal de sua saga “Em Busca do Tempo Perdido” é levado involutariamente pelas memórias de sua juventude depois de comer, durante um chá, um pequeno bolinho de pão de ló, cujo gosto era o mesmo que sentira quando dos lanches oferecidos por sua mãe quando criança.

As imagens que surgem no livro a seguir são repletas de cor cheiros e personagens há muito esquecidos, mas cuja relevância poderiam explicar-lhe muito sobre aquilo que vivia em seu presente. Pois bem, a onda de Bruno Santos no Pena Pro teve para mim o mesmo efeito que o pão de ló provocou na personagem de Proust.

O fato é que as reminiscências do mundo para o qual eu fui lançado graças ao surfista de Itacoatiara, concentrava sem que eu suspeitasse algo capaz de me fazer entender aquilo que me causara tamanha perplexidade e admiração: a sua incrível onda, nota 10.

Na encruzilhada das minhas lembranças, havia algo que transcendia minha vivência pessoal para constituir um mosaico de referências que mais pareciam traços de um tempo que, perdido, se faziam presentes na linha mágica desenhada por ele durante o tubo inacreditável.

Afinal, de onde ela surgia? Como era possível tudo aquilo? Eu bem sei que, quando envelhecemos, somos capazes de observar o tempo que passou com distanciamento e constatamos, com certa perplexidade, que a nossa memória se confunde com a reminiscência de muitos.

Por vezes, temos a sensação de que a individualidade, tão cara e preservada por nós, se dissolve para transformar-se em característica de uma geração. As referências culturais, os traços constitutivos de nossa vivência pessoal tornam-se, por isso, referências de um grupo muito mais amplo do aquele circunscrito à memória individual.

É possível, portanto, que a evocação de certas reminiscências também implique, em tese, no compartilhamento de algo que nos aproxima de nossos pares, a construção de um elo característico de uma comunidade que, de modo enviesado, nos torna membros de um grupo forjado por experiências comuns.

O fato é que eu tenho, hoje, cerca de 40 anos de idade. Porque comecei a surfar em 1980, eu sou fruto de uma geração que vivenciou uma importante fase de constituição da industria do surf; a formação de importantes ídolos do nosso esporte que, hoje, são considerados ícones do surf brasileiro e, sobretudo, o início da formação de uma identidade cultural que, impulsionada por um conjunto de pessoas obstinadas, uniram esforços para criar revistas e programas de televisão especializados, nos quais se revelavam os acontecimentos mais significativos do universo dessa tribo.

Lembro-me, vivamente, de ver os VTs das etapas do Circuito Mundial no Realce, embaladas por trilhas sonoras compostas por Australian Crow, New Order e tantos outros que, sem a internet, somente eram acessíveis para nós quando alguém conhecido voltava de uma viagem do exterior com a encomenda, ardentemente desejada, de baixo do braço.

Havia algo de comum e solidário naquela geração de jovens surfistas que se empenhavam em transformar os discos em fitas K-7 e espalhá-las entre os amigos. Algo importante se anunciava e, sem sabê-lo, éramos todos sujeitos àquilo que estava por vir.

Comentávamos as performaces de Tom Carroll em Sunset, a última etapa de Bells Beach, o sonho de surfar em Nias e muitas outras coisas que víamos nas páginas da Fluir e nas matérias feitas por Ricardo Bocão e Antônio Ricardo.

Sentíamos que fazíamos parte de um grupo constituído por um conjunto de referências comuns que desejávamos compartilhar e cujos modelos se encontravam estampados em fotos de páginas inteiras nas bancas de jornal. Fábio Gouveia, Teco Padaratz e Vitor Ribas despontavam como o futuro do surf brasileiro e suas vitórias eram comemoradas por nós como do time de nosso coração.

Era uma época em que surfistas transformavam-se, creio que pela primeira vez em nossa história, em ídolos de uma geração. Lembro-me vivamente de ver na praia de Geribá, em Búzios (RJ), o Roberto Valério na praia e sair do mar para vê-lo surfar.

Olhava para aquele homem, relativamente baixo para o tamanho que a minha imaginação conferia a ele, com a certeza de que estava diante de um acontecimento que embalaria muitas conversas com os meus amigos quando retornasse ao Rio de Janeiro: “Cara, o Valério tava na praia! Ele arrebentou!”.

Havia também aqueles que se vangloriavam de terem compartilhado o line-up com Jójo de Olivença, Tinguinha Lima, Cauli Rodriges ou almoçado, certa feita, com o Antônio Ricardo em um restaurante do Leblon. Cada um desses acontecimentos era visto por nós como algo extraordinário e significativo.

Afinal, aqueles eram personagens distantes, inatingíveis, mas que, embora mitificados pelas lentes das câmeras, também eram pessoas de carne e osso que comiam em restaurantes e faziam uma caída de fim tarde em uma praia qualquer de uma grande cidade brasileira. Até hoje, tenho dificuldade em acreditar que esses caras eram como eu, tamanha a admiração que tenho por eles. Mas vá lá, todo menino tem os seus heróis e eles foram, por assim dizer, os meus.

Quem, como eu, tinha por volta de 15 anos na década de oitenta e tenha vivenciado essa época pode muito bem lembrar-se de histórias similares, embora embaladas por outras personagens e outros picos. De Norte a Sul, uma cultura do surf se afirmava e ganhava traços comuns, vocabulário próprio e sonhava numa mesma sintonia.

O curioso é que toda passagem de bastão de uma geração para outra também configura um momento de transição que comporta traços da anterior e anúncios de um novo tempo. Eu, como muitos, estávamos justamente no ponto de intersecção que separava dois instantes distintos da história: o da transgressão de uma juventude que buscou no surf uma forma de manifestação de liberdade, sintoma talvez dos anos 70, e outra que se afirmava como um grupo segmentado, munido de uma identidade comum, auxiliada por um conjunto de referencias divulgadas pelos meios de comunicação especializados.

Creio que meu contato com o universo anterior àquele que caracterizou boa parte da minha geração tenha sido aberto por uma pessoa mais velha, como aliás é comum a qualquer formação. Todo jovem, surfista ou não, possui um irmão maior, um tio ou um amigo de família que, por tamanha generosidade e afeto, abre as portas de um tempo que de outra forma estaria fechado pelas imposições imperativas do presente.


No meu caso essa pessoa foi um fotógrafo de cinema amigo de meus pais chamado Toca Seabra. Mais conhecido por ser responsável por um dos melhores filmes dessa década, O Invasor, de Beto Brant. Toca era um legítimo representante da geração anterior à minha.
Muito magro, ele não possuía em seu repertório nenhuma manobra moderna, tão pouco se interessava pela pontuação do Circuito Mundial. O seu surf era de uma simplicidade comovente, fazia a linha, drop e fluidez na parede da onda. Jamais lutava contra o lip.

O surf para ele, ao contrário do que eu próprio acreditava na época, era deixar-se levar pela ondulação. Com ele, aprendi muito sobre formas de manifestar-me que jamais imaginei serem de fato legítimas. Não era preciso buscar a radicalidade, mas sim uma espécie de harmonia com o mar. O surf para mim ganhava novos contornos.

Toca era um personagem egresso do movimento de contracultura. Trabalhara no Cinema Novo, suas histórias sobre o surf ignoravam todos meus ídolos, fortemente admirados por mim. Isso não significa que não fosse antenado, pois era.

Apenas sua sensibilidade parecia captar coisas que para mim eram de um outro mundo. Com ele conheci personagens que logo alimentaram minha imaginação. À medida que o Toca levava-me para desbravar, era sim esse o termo exato, praias que me eram inacessíveis especialmente por não dirigir, da Zona Oeste do Rio de Janeiro, eu transformava-me em ouvinte de histórias maravilhosas, cheias de contratempo, praias desertas e desprendimento que tinham algo de maravilhoso.

Tratava-se do “pessoal das antigas”, era assim que de um modo respeitoso e admirado me referia a Renan Pitanguy, Rico de Souza, Pepê e Tito Rosemberg. Histórias de coragem, mares imensos, picos secretos. Não que os novos não tivessem tais qualidades, pois tinham, mas aqueles surfistas formados nos anos 70 eram pessoas diferentes para mim. Havia algo de misterioso naquela geração. Eram desbravadores de seu tempo, que se moviam por uma paixão, para mim, algo estranha.

Nunca conheci pessoalmente nenhum deles, mas à medida que desbravava as “praias desérticas” da minha juventude, Grumari e Prainha, conhecia também um outro mundo, com outras trilhas sonoras - como disse Fred D’Orey certa vez - repletas de longos solos de guitarra.

A minha memória de juventude é justamente o contato desses dois mundos que de modo geral se mantém vivos em mim. Por isso, lembro-me de meu quarto na adolescência como a expressão desse encontro de gerações. Ainda posso ver minha primeira prancha, uma gun vermelha shepeada pelo Rico de Souza, ao lado de uma foto de Daniel Friedman grudada na parede. Na estante, algumas revistas de surf empilhadas e na TV, Ricardo Bocão apresentava uma matéria sobre a última vitória de Fábio Gouveia.

O fato é que o surf já possui uma história e, porque não, uma genética própria. E mesmo que não saibamos, somos todos herdeiros de uma tradição que em nós deixam marcas profundas, nem sempre evidentes, mas que nos constitui como membros de uma comunidade.

Ao ver a onda de Brunos Santos na Cacimba, acredito que a razão de meu alumbramento foi justamente ver concentrado em um único instante duas importantes matrizes da cultura surf. Havia ali algo de moderno materializado no espaço do campeonato, limitado pelo tempo da bateria e sobretudo pelo registro ao vivo proporcionado pela internet; mas havia também a linha despreocupada, o surf que não se degladia com a onda, o risco inconsequente. Em Bruno Santos, como em Rob Machado e no homem de outro planeta que é Tom Currem, a tradição se concentra como síntese.

Se o tempo de minha juventude foi o tempo em que as gerações se dividiram para poderem afirmar-se como representantes de um tempo histórico preciso, ele também foi o tempo de comunhão e harmonia. E era isso que, acredito, aquela onda me avisava.

Por isso toda astúcia capaz de catalogar e explicar as diferenças entre um período e outro de nossa história cai por terra quando em uma única onda somos levados à certeza de que os córregos que constituem nossa tribo desenbocam, vez ou outra, em um único e volumoso rio.

É nesse momento que, sem querer, a memória involuntariamente evocada serve para lembrar-nos o que, teimosamente, tentamos separar.

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