Na última quinta-feira (11/2) acordei mais cedo para levar meus
filhos à escola. Quando cheguei em casa, entrei na internet para
acompanhar Pena Pro Noronha 2010, motivado pelas notícias de que no dia
anterior havia rolado um mar clássico, com ondas grandes e atuações
antológicas.
Abri o computador no exato momento da bateria do niteroiense Bruno
Santos e vi, ao vivo, ele surfar uma onda, com drop atrasado que lhe
rendeu nota 10 unânime. Vi o replay algumas vezes e não conseguia
acreditar no que havia visto.
O tubo parecia não ter porta de saída e a velocidade com que as
placas de água caíam era proporcional à certeza de que Bruno Santos não
conseguiria, definitivamente, sair ileso daquela situação em que se
metera. No entanto, para a minha surpresa, com extrema simplicidade e
leveza ele encontrou uma linha que me parecia impossível para conquistar
a primeira nota máxima do campeonato.
Enquanto tentava sair do estado de perplexidade provocado por
aquela cena e buscava organizar o pensamento com o objetivo de encontrar
uma explicação racional para aquele acontecimento, uma série de
lembranças sem qualquer aviso rompiam a vigilância de minha consciência
para levar-me ao tempo de minha juventude.
De algum modo, eu parecia estar dentro dos livros de Marcel Proust, romancista francês que para muitos é responsável por uma das
cenas mais intrigantes e memoráveis da literatura moderna. No caso, o
personagem principal de sua saga “Em Busca do Tempo Perdido” é levado
involutariamente pelas memórias de sua juventude depois de comer,
durante um chá, um pequeno bolinho de pão de ló, cujo gosto era o mesmo
que sentira quando dos lanches oferecidos por sua mãe quando criança.
As imagens que surgem no livro a seguir são repletas de cor cheiros e
personagens há muito esquecidos, mas cuja relevância poderiam
explicar-lhe muito sobre aquilo que vivia em seu presente. Pois bem, a
onda de Bruno Santos no Pena Pro teve para mim o mesmo efeito que o pão
de ló provocou na personagem de Proust.
O fato é que as reminiscências do mundo para o qual eu fui lançado
graças ao surfista de Itacoatiara, concentrava sem que eu
suspeitasse algo capaz de me fazer entender aquilo que me causara
tamanha perplexidade e admiração: a sua incrível onda, nota 10.
Na encruzilhada das minhas lembranças, havia algo que transcendia
minha vivência pessoal para constituir um mosaico de referências que
mais pareciam traços de um tempo que, perdido, se faziam presentes na
linha mágica desenhada por ele durante o tubo inacreditável.
Afinal, de onde ela surgia? Como era possível tudo aquilo? Eu bem sei
que, quando envelhecemos, somos capazes de observar o tempo que passou
com distanciamento e constatamos, com certa perplexidade, que a nossa
memória se confunde com a reminiscência de muitos.
Por vezes, temos a sensação de que a individualidade, tão cara e
preservada por nós, se dissolve para transformar-se em característica de
uma geração. As referências culturais, os traços constitutivos de nossa
vivência pessoal tornam-se, por isso, referências de um grupo muito
mais amplo do aquele circunscrito à memória individual.
É possível, portanto, que a evocação de certas reminiscências também
implique, em tese, no compartilhamento de algo que nos aproxima de
nossos pares, a construção de um elo característico de uma comunidade
que, de modo enviesado, nos torna membros de um grupo forjado por
experiências comuns.
O fato é que eu tenho, hoje, cerca de 40 anos de idade. Porque
comecei a surfar em 1980, eu sou fruto de uma geração que vivenciou uma
importante fase de constituição da industria do surf; a formação de
importantes ídolos do nosso esporte que, hoje, são considerados ícones
do surf brasileiro e, sobretudo, o início da formação de uma identidade
cultural que, impulsionada por um conjunto de pessoas obstinadas, uniram
esforços para criar revistas e programas de televisão especializados,
nos quais se revelavam os acontecimentos mais significativos do universo
dessa tribo.
Lembro-me, vivamente, de ver os VTs das etapas do Circuito Mundial no
Realce, embaladas por trilhas sonoras compostas por Australian Crow,
New Order e tantos outros que, sem a internet, somente eram acessíveis
para nós quando alguém conhecido voltava de uma viagem do exterior com a
encomenda, ardentemente desejada, de baixo do braço.
Havia algo de comum e solidário naquela geração de jovens surfistas
que se empenhavam em transformar os discos em fitas K-7 e espalhá-las
entre os amigos. Algo importante se anunciava e, sem sabê-lo, éramos
todos sujeitos àquilo que estava por vir.
Comentávamos as performaces de Tom Carroll em Sunset, a última etapa
de Bells Beach, o sonho de surfar em Nias e muitas outras coisas que
víamos nas páginas da Fluir e nas matérias feitas por Ricardo Bocão e
Antônio Ricardo.
Sentíamos que fazíamos parte de um grupo constituído por um conjunto
de referências comuns que desejávamos compartilhar e cujos modelos se
encontravam estampados em fotos de páginas inteiras nas bancas de
jornal. Fábio Gouveia, Teco Padaratz e Vitor Ribas despontavam como o
futuro do surf brasileiro e suas vitórias eram comemoradas por nós como
do time de nosso coração.
Era uma época em que surfistas transformavam-se, creio que pela
primeira vez em nossa história, em ídolos de uma geração. Lembro-me
vivamente de ver na praia de Geribá, em Búzios (RJ), o Roberto Valério
na praia e sair do mar para vê-lo surfar.
Olhava para aquele homem, relativamente baixo para o tamanho que a
minha imaginação conferia a ele, com a certeza de que estava diante de
um acontecimento que embalaria muitas conversas com os meus amigos
quando retornasse ao Rio de Janeiro: “Cara, o Valério tava na praia! Ele
arrebentou!”.
Havia também aqueles que se vangloriavam de terem compartilhado o
line-up com Jójo de Olivença, Tinguinha Lima, Cauli Rodriges ou
almoçado, certa feita, com o Antônio Ricardo em um restaurante do
Leblon. Cada um desses acontecimentos era visto por nós como algo
extraordinário e significativo.
Afinal, aqueles eram personagens distantes, inatingíveis, mas que,
embora mitificados pelas lentes das câmeras, também eram pessoas de
carne e osso que comiam em restaurantes e faziam uma caída de fim tarde
em uma praia qualquer de uma grande cidade brasileira. Até hoje, tenho
dificuldade em acreditar que esses caras eram como eu, tamanha a
admiração que tenho por eles. Mas vá lá, todo menino tem os seus heróis e
eles foram, por assim dizer, os meus.
Quem, como eu, tinha por volta de 15 anos na década de oitenta e
tenha vivenciado essa época pode muito bem lembrar-se de histórias
similares, embora embaladas por outras personagens e outros picos. De
Norte a Sul, uma cultura do surf se afirmava e ganhava traços comuns,
vocabulário próprio e sonhava numa mesma sintonia.
O curioso é que toda passagem de bastão de uma geração para outra
também configura um momento de transição que comporta traços da
anterior e anúncios de um novo tempo. Eu, como muitos, estávamos
justamente no ponto de intersecção que separava dois instantes distintos
da história: o da transgressão de uma juventude que buscou no surf uma
forma de manifestação de liberdade, sintoma talvez dos anos 70, e outra
que se afirmava como um grupo segmentado, munido de uma identidade
comum, auxiliada por um conjunto de referencias divulgadas pelos meios
de comunicação especializados.
Creio que meu contato com o universo anterior àquele que
caracterizou boa parte da minha geração tenha sido aberto por uma pessoa
mais velha, como aliás é comum a qualquer formação. Todo jovem,
surfista ou não, possui um irmão maior, um tio ou um amigo de família
que, por tamanha generosidade e afeto, abre as portas de um tempo que de
outra forma estaria fechado pelas imposições imperativas do presente.
No meu caso essa pessoa foi um fotógrafo de cinema amigo de meus pais
chamado Toca Seabra. Mais conhecido por ser responsável por um dos
melhores filmes dessa década, O Invasor, de Beto Brant. Toca era um
legítimo representante da geração anterior à minha.
Muito magro, ele não possuía em seu repertório nenhuma manobra
moderna, tão pouco se interessava pela pontuação do Circuito Mundial. O
seu surf era de uma simplicidade comovente, fazia a linha, drop e
fluidez na parede da onda. Jamais lutava contra o lip.
O surf para ele, ao contrário do que eu próprio acreditava na época,
era deixar-se levar pela ondulação. Com ele, aprendi muito sobre formas
de manifestar-me que jamais imaginei serem de fato legítimas. Não era
preciso buscar a radicalidade, mas sim uma espécie de harmonia com o
mar. O surf para mim ganhava novos contornos.
Toca era um personagem egresso do movimento de contracultura.
Trabalhara no Cinema Novo, suas histórias sobre o surf ignoravam todos
meus ídolos, fortemente admirados por mim. Isso não significa que não
fosse antenado, pois era.
Apenas sua sensibilidade parecia captar coisas que para mim eram de
um outro mundo. Com ele conheci personagens que logo alimentaram minha
imaginação. À medida que o Toca levava-me para desbravar, era sim esse o
termo exato, praias que me eram inacessíveis especialmente por não
dirigir, da Zona Oeste do Rio de Janeiro, eu transformava-me em ouvinte
de histórias maravilhosas, cheias de contratempo, praias desertas e
desprendimento que tinham algo de maravilhoso.
Tratava-se do “pessoal das antigas”, era assim que de um modo
respeitoso e admirado me referia a Renan Pitanguy, Rico de Souza, Pepê e
Tito Rosemberg. Histórias de coragem, mares imensos, picos secretos.
Não que os novos não tivessem tais qualidades, pois tinham, mas aqueles
surfistas formados nos anos 70 eram pessoas diferentes para mim. Havia
algo de misterioso naquela geração. Eram desbravadores de seu tempo, que
se moviam por uma paixão, para mim, algo estranha.
Nunca conheci pessoalmente nenhum deles, mas à medida que desbravava
as “praias desérticas” da minha juventude, Grumari e Prainha, conhecia
também um outro mundo, com outras trilhas sonoras - como disse Fred
D’Orey certa vez - repletas de longos solos de guitarra.
A minha memória de juventude é justamente o contato desses dois
mundos que de modo geral se mantém vivos em mim. Por isso, lembro-me de
meu quarto na adolescência como a expressão desse encontro de gerações.
Ainda posso ver minha primeira prancha, uma gun vermelha shepeada pelo
Rico de Souza, ao lado de uma foto de Daniel Friedman grudada na parede.
Na estante, algumas revistas de surf empilhadas e na TV, Ricardo Bocão
apresentava uma matéria sobre a última vitória de Fábio Gouveia.
O fato é que o surf já possui uma história e, porque não, uma
genética própria. E mesmo que não saibamos, somos todos herdeiros de uma
tradição que em nós deixam marcas profundas, nem sempre evidentes, mas
que nos constitui como membros de uma comunidade.
Ao ver a onda de Brunos Santos na Cacimba, acredito que a razão de
meu alumbramento foi justamente ver concentrado em um único instante
duas importantes matrizes da cultura surf. Havia ali algo de moderno
materializado no espaço do campeonato, limitado pelo tempo da bateria e
sobretudo pelo registro ao vivo proporcionado pela internet; mas havia
também a linha despreocupada, o surf que não se degladia com a onda, o
risco inconsequente. Em Bruno Santos, como em Rob Machado e no homem de
outro planeta que é Tom Currem, a tradição se concentra como síntese.
Se o tempo de minha juventude foi o tempo em que as gerações se
dividiram para poderem afirmar-se como representantes de um tempo
histórico preciso, ele também foi o tempo de comunhão e harmonia. E era
isso que, acredito, aquela onda me avisava.
Por isso toda astúcia capaz de catalogar e explicar as diferenças
entre um período e outro de nossa história cai por terra quando em uma
única onda somos levados à certeza de que os córregos que constituem
nossa tribo desenbocam, vez ou outra, em um único e volumoso rio.
É nesse momento que, sem querer, a memória involuntariamente evocada
serve para lembrar-nos o que, teimosamente, tentamos separar.
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