O Mote
Em meados do mês de Dezembro, alguns dias depois da vitória de Adriano de Souza, Adrian Kojin publicou um artigo no site Waves a respeito da onda “inventada" por Kelly Stater. À época, surpreendi-me com a quantidade de comentários contrários ao texto do camarada. Em tese, o tom de indignação reinou e, cá com meus botões, pensei que, se não concordava com todos os argumentos levantados por Adrian, havia algo, ali, com que me identificava… Não seriam, no caso, os argumentos sobre o oportunismo do Kelly em revelar ao mundo a sua criação no dia seguinte em que Adriano sagrou-se campeão… Tampouco as teses sobre a mercantilização do surf… Chamou-me a atenção aquilo que, suponho, fosse a razão do cronista ter escrito um texto com tanta indignação: a sensação de que o surf perde, a cada instante, um pouco de sua capacidade de aproximarmo-nos da natureza… Convenhamos, isso não me parece responsabilidade do Surf, mas, sim, da ordem dos acontecimentos que, sem muito aviso, restringe as possibilidade de que temos de reviver as aventuras das gerações que nos precederam. Para driblar o movimento que transforma toda praia deserta em condomínio de fim de semana, precisamos de muito dinheiro e um bom guia de viagem… E isso é uma pena… Mas Slater não me parece ter nada com isso… nem sujeito das ações, nem responsável pelo perda da inocência…
O fato é que mundo não mudou muito desde o tempo em que eu e, possivelmente, Adrian, a quem não conheço pessoalmente, iniciamo-nos no universo de pranchas e ondas… Na verdade, apenas assistimos, em 2015, à maturação daqueles traços que, embora não fossem predominantes, estavam presentes no universo de nossa adolescência… Não tenho a intenção de defender o camarada, experiente e com voz própria, sobre o seu artigo… Entretanto, não vejo nenhum mal em discutirmos um pouco as razões que talvez levem a todos nós para a busca, nem sempre com sucesso, pelas raízes do surf, do espírito desbravador de quem sempre acredita existir uma onda melhor por aí e que ela precisa ser descoberta… Onda boa e aventura, máxima felicidade… Talvez a invenção de Slater apenas contemple um parte dessa equação… Para mim, aquela bancada artificial bem que podia ficar no meu quintal… Mas, sejamos francos, o universo do surf envolve tantas coisas que estar em cima de uma prancha, numa longa parede, é, muitas vezes, apenas uma das razões para estarmos nessa brincadeira… Surf é também a roubada de uma viagem, a incerteza da ondulação, a conversa com os camaradas na arrebentação… Possivelmente, Adrian tenha visto na onda do onze vezes campeão mundial, um fenômeno, uma possível traição àqueles sentimentos, arduamente cultivados, por quem aprendeu a surfar no Brasil entre o fim da década de setenta e o inicio dos anos oitenta… A questão é verificar se o passado foi realmente imaculado, livre das inúmeras ameaças contra o espírito livre, característica universal de todo camarada que, alguma vez, molhou os pés na água salgada. Afinal, o debate ao redor da criação de Slater não me parece novo, embora a tonalidade da discussão, isto sim, surpreende-me um pouco…..
Prolixidade ou a busca das raízes…
A década de 80, no Brasil, foi um turbulento encontro das águas, especialmente no universo do surf… Esse foi o endereço em que se cruzaram, de modo mais evidente, os afluentes advindos do passado e do futuro, do romantismo da década de 70 e do anúncio, ainda que de modo prematuro, da matriz genética do Brasil Storm. Não sinto saudades desse tempo além daquela que nasce quando relembramos o tempo de adolescência, época em que o mundo do trabalho parecia tão distante quanto os caminhos que me levavam, morador do Jardim Botânico, a um dia de ondas na Pedra de Guaratiba….
A década de oitenta foi, pois, o período em que se consolidou a industria da juventude no Brasil… Rock Brasil, a criação de uma centena de marcas destinadas a vestir a garotada, a consolidação de novos balneários para a alegria do fim de semana… O espírito era eletrizante com canções que cortavam o ar com a sintaxe própria dos novos tempos… Os temas eram, quase sempre, subjetivos, vinculados às esferas dos sentimentos de cada um de nós frente ao amor, ao elogio de viver intensamente cada momento… É verdade que, vez ou outra, o sismógrafo apontava as consequências dos novos tempos, isto é, a perda de espaço dos moradores da Zona Sul para o restante da incipiente sociedade de consumo, reivindicante, ela mesma, de um lugar nessa areia… O Rio de Janeiro modificava-se rapidamente e, assim, suponho que o restante do país… Queríamos ouvir Australian Crown, sonhar com um verão sem fim, mas queríamos também usar bermudas da Tico, camisetas da Company, tênis da Redley… Não parecia haver, pelo que me lembre, fronteiras claras entre os segmentos de consumo… Todos ouviam, em grande medida, as mesmas músicas, usavam as mesmas roupas e desejavam uma fatia do bolo. O Rio Quarenta Graus encontrava-se em proto-gênese… O surf iniciava-se na caminhada que o levou a tornar-se indústria… E, como sabe, a produção em massa somente existe porque há consumo em massa… Em tese, isso não é um problema ao não ser quando o resultado inverso desse processo realiza-se pela reivindicação de uma experiência pessoal, de algo particular. Paradoxo contemporâneo que, suspeito, jamais se resolverá plenamente…
O nome do negócio, pois, era viver cada momento com intensidade, sem medo do amanhã, descobrir novas terras e ter, na memória, cicatrizes da aventura… O novo… o que importava, aqui, era o novo… Marcas de uma época que, malgrado o avanço do tempo, ainda se vê presente nos arredores de 2015… Os destinos mudaram de nome e, com o fácil acesso aos aeroportos, de país… Indonésia, América Central, Nova Zelândia…. e, por que não, a fria e distante Islândia… Aventurar-se por aí é o mais importante, ainda mais em tempo de explosão demográfica e pasteurização de sabores… Os surfistas da California, quem sempre estabeleceram o campo das vanguardas no nosso universo, definiram um dos caminhos a serem seguidos… Muito dos talentosos jovens daquelas veredas abriram mão, na última década, de participarem das competições para embrenhar-se numa busca obsessiva pela manutenção de uma sorte de integridade romântica com a natureza… E, como não poderia deixar de ser, o mercado sentiu essa tendência… Lá está a Hurley, anos luz na frente de seus pares, a realizar propagandas com Rob Machado, numa motocicleta indie, a rodar pelo deserto de Baja México… Temo que esse não seja o único exemplo desse processo, o qual, acredito, invadirá, logo mais, com a força de quem percebeu os desejos de seus consumidores, as revistas e as vitrines das grandes lojas. Em muito breve, nós veremos fotos enormes, em shopping centers, de surfistas barbudos em alguma das raras bancadas inóspitas do nosso planeta super habitado.
A origem da desordem?
Realmente, sensível para nós, quem passávamos o dia na praia em meados dos anos oitenta, já era o prenúncio do porvir: o aumento de pessoas nas praias, nas ruas e nos paraísos descobertos pela fase heróica. Nós emulávamos aquela juventude que segurou, entre os braços, uma prancha de surf Ligth Bolt e que, sem nenhum sinal de cansaço, carregava nas costas pesadas barracas de lona… Saquarema… Saquarema… À medida que a cidade entupia-se de gente, nós apontávamos para o Sul… descobríamos a Macumba, Grumary, Prainha, Pedra de Guaratiba… Hoje, para o meu pesar, com o mesmo crowd que víamos no Posto 10 em Ipanema durante a minha adolescência…
Àquela época, contudo, ainda havia muitos lugares para viajar, praia descobertas pelos primeiros desbravadores que continuavam, sobretudo no Nordeste e no Sul do país, propriedade, quase exclusiva, de seus poucos moradores… Paracuru, Itacaré, Noronha, Bahia Formosa, Ferrugem, Joaquina… Cada vez que escutava esses nomes, lançava-me para o terreno fértil da imaginação e sonhava com uma viagem de carro, com os camaradas mais velhos, numa Paraty enlameada… Esse era, suspeito, o desejo de muitos… Pé na estrada, praia deserta e onda, muita onda para dar e vender… A década de 80 foi o endereço para a minha geração de uma estranha forma de reagir, expontânea e coletivamente, contra as mazelas da incipiente sociedade de consumo brasileira. Nada digno de nota, pelo menos nos livros de história, porque não havia, é verdade, uma revolução no hábitos capaz de contemplar a maioria de nossa sociedade. Entretanto, seria ingênuo ignorar que algo havia mudado… Quando os estímulos se modificam, modificam-se também as respostas a tais estímulos…
Embora o movimento que introduziu uma certa eletricidade na atmosfera fosse desorganizado, sem liderança anunciada, os efeitos dele faziam-se presente, aqui e acolá, na garotada que deu prosseguimento aos sonhos da geração anterior, ao mesmo tempo em que nós reivindicávamos a autenticidade de um lugar ao sol… Queríamos as roupas de marcas, as pranchas da Cristal Grafitti, surfar como Dadá Figueiredo, mas também desejávamos estar longe daquilo tudo, provar alguma coisa da década de 70…. Outro dia, ao assistir um desses programas do Canal Off, deparei-me com um depoimento de um camarada, vinte e poucos anos, apaixonado pelo surf, a dizer que precisava, em pleno 2015, viver algo daquela geração… O sentimento continua ativo e atravessou mais de trinta anos intactos porque o mundo mudou pouco ou quase nada… Na verdade, temo que as coisas apenas se intensificaram…..
Sem mais nem menos, começaram a pipocar notícias de amigos que se lançavam, em época de inflação galopante e dólar estratosférico, em viagens pelo Brasil. O avião era um luxo inacessível para a maioria de nós… O negócio era meter-se num ônibus, ao som de New Order, e controlar as emoções para aguentar muitas horas numa poltrona desconfortável… As preocupações eram, quase sempre, com a integridade das pranchas no bagageiro… Elas estariam bem? Essa era a pergunta que, de tempos em tempos, invadia as nossas conversas durante o tempo de espera… Foi nesse diapasão que, eu e meus camaradas, decidimos ir para Florianópolis para assistir um dos campeonatos mais importantes da história do surf brasileiro: O Hang Loose de 1987… Joaquina, Joaquina… a praia de dunas brancas e longas esquerdas… Lá, nos extertores da década de oitenta, a nova ordem das coisas materializou-se, pela primeira vez, para mim.
A viagem...
A viagem foi mais longa do que imaginei… Carrol, um dos meus ídolos, participaria do campeonato…. Íamos para o Sul com a certeza de que seríamos testemunhas oculares daquilo a que somente assistíamos no Realce… As Dunas, as ondas e uma multidão na areia e no line up entorpeciam os sentidos… O surf romântico, ao qual eu dedicava-me a procurar, tinha sido deixado de lado… Vejam, eu não tenho nenhuma ressalva à competição, aliás um dos meus maiores prazeres na vida é acompanhar os camaradas em sua busca incessante pelo caneco… Mas, sejamos francos, cinco dias num campeonato é a certeza de que você pegará pouquíssimas ondas… Quem já dividiu espaço na arrebentação com um profissional sabe bem disso…
Na areia, encontrei mais de uma centena daqueles óculos Oakley, que cobriam o todo o rosto com suas lentes espelhadas e coloridas… Senti-me parte de uma tribo, entre iguais, mas senti que o silêncio de uma caída do fim de tarde com os mais próximos tornara-se uma coisa rara… O resultado da contenda importou menos do que a certeza de que deveria ter viajado para outra bancada, longe… milhares de milhas da Joaquina… Recentemente, assisti a uma entrevista com Fred D’Orey… Nela, o dono da prancha vermelha, resumiu aquilo que senti, quando de minha viagem para o Hang Loose: Se tem um campeonato aqui, eu vou para o outro lado…
Campeonatos, disseminação do surf como atividade de massas,e avanço dos condomínios particulares nas inúmeras praias brasileiras tornaram-me, em meio a alegria de ver os brasileiros tomarem de assalto o circuito mundial, consciente de minha claustrofobia… Por isso, a criação de Slater pode ter parecido, para alguns, uma consequência natural do processo de desenraizamento do surf de sua origem romântica… Nesse caso, aparência não implica realidade… O modo como o maior de todos os tempos arquitetou a sua piscina, por estranho movimento, ambiciona enquadrá-la, ainda que de modo canhestro, no meio da vida selvagem… Artificial, é verdade…. Todavia, integro…
O problema não é, nesse caso, Slater ou a reação de Adrian… Estamos, isso sim, inseridos num mundo onde fazemos o que é possível, pois as impossibilidades parecem ser uma norma com a qual devemos nos acostumar… A população mundial cresceu muitíssimo e, com ela, milhares de pessoas como eu aprenderam a amar o surf… Natural é encontrar as bancadas repletas de pranchas a disputar-lhes as ondas… Qual solução haveria para isso? Vejam, a criação de Slater e a indignação de Adrian parecem ter, para mim, a mesma razão… O que importa, aqui, é saber se a solução desenhada por anos e o sentimento de que perdemos algo de essencial da nossa relação com o mar não se constitui num paradoxo sem solução…
Continua…
2 comentários:
Gostei do texto, me fez refletir sobre boas coisas de uma época e como estas se vão, sendo subsistidas por novas tendencias e as vezes só nos damos conta quando já não existem mais.
Abraços e boas ondas.
Carlos
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