No evento do Thaiti, em 2014, Nick Carroll concedeu uma entrevista em que analisava o circuito, os favoritos, Gabriel e a nova ordem do surf mundial, cuja latitude parecia, àquele momento, deslocar-se consideravelmente rumo ao Sul, especificamente para o quadrante do Litoral Norte de São Paulo, Brasil… O Camarada, forte como um touro, discorria com costumeira elegância quando um vatícinio, aparentemente despretensioso, se fez… O texto, se não me trai a memória, organizava-se, mais ou menos, nesses termos: “O Brasil é um país jovem no cenário do surf mundial, Gabriel é o primeiro grande surfista de expressão cujas possibilidades de título são reais e, possivelmente, ele se concretizará nesse ano. Todavia, Gabriel não é o novo Kelly Slater, pelo menos, ainda não é o surfista brasileiro que pode assumir o lugar simbólico ocupado pelo E.T…” Ao que segue: “O grande surfista brasileiro ainda está para aparecer…"
Confesso que, num primeiro momento, senti uma certa arrogância na declaração, por que não um tom de recalque… Afinal, Gabriel promoveu, durante a sua curta e brilhante carreira, a construção de um dos movimentos mais admiráveis a que assisti de corações e mente rumo ao universo do surf; seja no Brasil, seja no mundo. O título de 2014 foi dele porque Gabriel, acredito piamente nisso, é um fenômeno… Como acompanho a trajetória do menino há muito, percebo, hoje distante no tempo, que não fui um bom ouvinte para a análise de Carroll…
Deveria ter desconfiado que o camarada não se põe a dissertar sobre algo de modo leviano… Os textos dele, escritos por mais de duas décadas, sempre foram muito equilibrados, disciplinadamente estranhos a preconceitos e as ondas de euforia da moda…Se não concordo por completo com a entrevista concedida durante o evento mais incrível da história do surf competitivo, isso não significa que não devamos seguir as pistas abertas por Carroll… Com o início da temporada de 2015, tenho, cá com meus botões, posto em suspensão os meus preconceitos, os mesmos que provocaram certa resistência quando da entrevista do irmão de Tom, graças a Felipe Toledo…
A primeira ondulação da tempestade…
Desde 2008, ano em que conheci Gabriel e Charles, eu suspeitei que aquele menino pudesse ser, um dia, comparado aos grandes. Bastava apenas crescer, ganhar corpo, musculatura… Em tese, o título de 2014 apenas confirmou que estávamos diante de um astro que brilhava num céu sem atmosfera…
A onda impulsionada com o caneco, sonho de, pelo menos, duas gerações de surfistas brasileiros, logo se fez presente nas praias do nosso litoral… Muitas pessoas, que jamais pensaram em surfar, compram pranchas e equipamento para viverem, numa tarde de fim de semana, um momento de Gabriel Medina… Isso é um feito admirável, ainda mais para um menino de 21 anos…
Ao talento e, sobretudo, ao espírito competitivo do menino, somavam-se certos elementos que ajudaram a impulsionar essa ondulação… O personagem, que comove e comoveu milhares de pessoas através de inúmeras notícias nos grandes meios de comunicação, foi construído também pela relação com o seu pai, treinador e, sobretudo, parceiro fundamental para Gabriel alcançar, em Pipe, o resultado que o inscreveu na história… Se não fosse somente pelo surf impressionante do menino, a comoção ao redor dele ocorreu pelas tonalidades imprimidas pela relação familiar, em especial pelo vínculo entre pai e filho… E isso não deve e não pode ser ignorado quando o ajuste de contas sobre os acontecimentos se fizer… Charles, mas também Simone, foram e são tão importantes para Gabriel como o dez na porta dos fundos de Pipeline…
Quando fui para Peniche, na penúltima etapa de 2014, Charles confessou-me, durante um manhã de treino, que o menino tinha sido aceito pelos donos do poder… E isso não deve ser ignorado… Gabriel é um boa pinta, bom filho, grande surfista, competidor mortal… A criatividade de outros tempos, todavia, foi paulatinamente substituída por uma força descomunal nas manobras de borda, possivelmente uma adequação ao modo anglo-saxão de encarar o surf… Gabriel surfa, hoje, cada vez mais próximo à sintaxe compreendida pela bancada de julgamento do tour… Talvez ele tenha apreendido algo com Adriano… O talento do Gabriel é imenso, e a rapidez com que apreende deveria ser objeto, algum dia, de uma análise mais apurada…
O fato é que 2015 se iniciou em outro diapasão para o atual campeão mundial… Para mim, algo compreensível… ele voltará, e quando isso acontecer, a força de sempre se fará sentir… O problema, agora, diferente dos eventos que antecederam ao título de 2014, será o convívio com a mitologia que cerca o seu amigo e companheiro de longa data, Felipe Toledo… O adversário de Gabriel, aquele que o incomodará nos anos por vir, não será, como se espera, João João… O filho dileto do arquipélago, contraponto natural ao herdeiro de Charles, não me parece ser o competidor que irá tirar o sono do atual campeão… Esse fardo, ao que tudo indica, será carregado por Felipe Toledo. Isso porque João João, gênio do surf, futuro campeão mundial, representante legítimo do mundo sonhos, não é brasileiro… e isso, por incrível que pareça, configura uma outra densidade a questão… Felipe, por sua vez, nasceu nessas veredas, extremamente criativo, treinado pelo Ricardo, seu pai, e muitíssimo respeitado por seus pares… As semelhanças, nesse caso, não são conforto, mas, sim, resultantes de um possível e incontornável incômodo comparativo… Conhecendo algo de Gabriel…. uma batalha se anuncia… Uma batalha que nunca será capaz de por em risco a amizade entre eles, ainda que essa disputa possa determinar quem é quem na história do surf nacional em particular e no mundo competitivo no geral… A conferir…
A nova onda vem de Itamambuca…
No mundo do surf competitivo, os brasileiros ainda serão, durante muito tempo, brasileiros… Sejamos francos, isso já é o bastante para que nos lancemos, a cada bateria, com sangue nos olhos e faca nos dentes… O handicap é sensível… Não o ignoremos, mas também não façamos disso uma bandeira… é possível que o sentimento de grupo tenha nascido dessa consciência… Embora os meninos sejam solidários entre si, amigos de longa data e, por isso, compartilhem um sentimento comum de trincheira… Eles querem tomar o circuito; entretanto, apenas alguns deles conseguirão essa proeza… Essa a ordem do jogo e não será a nacionalidade que mudará as suas regras…
Ainda somos vistos, embora isso tenha mudado um pouco nos últimos anos, como penetras de uma festa fechada… Gabriel foi o primeiro a entrar, de fato, nesse baile com convite VIP… mas, suspeito, não será o único…
Felipe Toledo é a bola da vez e, de algum modo, o menino possui certos elementos comuns a Gabriel; seja no surf, seja na maneira como a família entremeia-se na sua carreira .. Entretanto, coisas em comum, caso sejam analisadas com cuidado, por vezes, se dissolvem para, depois, se constituírem em profunda diferença… Grandes surfistas, pois, tem sempre uma característica em comum: eles não são cópias de ninguém porque, se de fato grandes, eles são únicos…
O ano de 2015 é o endereço onde Felipe começa a voar, exclusivamente, com as suas asas… O filho do Ricardo não é mais um dos representante do Brasiliam Storm, o filho do Ricardo agora é um dos surfistas mais impressionantes em atividade… e isso não é para todo mundo, não mesmo…
Para ser claro, o surf de Felipe provocou mais estragos, nos últimos dois meses, no imaginário do universo de competição do que qualquer evento provocado por outro surfista brasileiro até aqui… Exceção feita aos realizados por Gabriel… Felipe é hoje uma unanimidade… Para mim, para Slater, para os comentadores do Tour…. e para quem mais estiver por essas bandas… Algo admirável… A razão disso… talento puro unido a resultados expressivos…
A rapidez com que Felipe surfa, o modo com que une uma manobra a outra, a beleza do seu estilo e a inventividade de suas manobras acima do lip são requisitos suficientes para que pudéssemos enxergá-lo como um fora de série… Se somarmos a isso os resultados obtidos nos últimos dois meses e, sobretudo, o modo que se impôs na costa dourada bem como na bancada de São Clemente; poderíamos conferir-lhe a alcunha de fenômeno… A exclusividade de Gabriel agora é compartilhada por um outro surfista brasileiro, tão ou mais impressionante do que ele é… Não precisaríamos nem mesmo lembrar que o menino tem somente 20 anos… No caso, o único surfista do tour com chances reais de ser o mais novo campeão mundial da história…
Muitos dizem que ele ainda tem muito a provar em ondas de consequência… Para mim, as próximas etapas podem ser, efetivamente, uma surpresa para quem lhe atribuiu certa suspeição em condições pesadas… ele está pronto, basta recordar de sua atuação em Pipe…
O triângulo do surf brasileiro não é equilátero…
Adriano é o surfista a quem espero assistir campeão mundial. Merece e ponto… Todavia, não foi e, suspeito, jamais será aceitos pelos homens que dirigem o negócio. Não possui áurea de um surfista extraordinário, mas, sim, de um competidor voraz… E esse traço, quando falamos de competição, não pode ser ignorado…
O relaxamento de Gabriel abriu um vácuo para a consolidação de Felipe… Relaxamento que pode custar caro para o menino de Maresias…
Felipe, bem… A apresentação em Trestles como aquela ocorrida na primeira etapa do Tour de 2015 não deixam dúvidas… O melhor surfista do campeonato venceu, convenceu e ninguém em sã consciência duvida disso… O curioso é que nunca atribuímos a ele a adjetivação de grande competidor, de exímio estrategistas… Felipe é talento puro em explosão… Ninguém no mundo surfa ondas entre três e cinco pés como ele… Até pouco tempo, os fóruns especializados apontavam a suas fraquezas competitivas e lamentavam derrotas em baterias ganhas, ora porque ele escolheu mal as ondas surfadas, ora porque não soube administrar os trinta minutos… Quando nenhuma luz se faz…. Convidamos Derek Hynd para sentar na mesa… ranzinza, é claro… mas sempre lúcido… Leio e escuto com muita atenção o caolho… Pois bem, Derek Hynd declarou sobre a vitória na Costa Leste: “O impacto do surf de Toledo nessa etapa é similar ao impacto que senti quando assisti ao jovem Currem”… Derek, Curren e Felipe numa mesma sentença já é suficiente para dimensionar o estrago que o filho de Ricardo é capaz de promover…
Eu não duvido que Gabriel ainda fará muito em sua carreira, um monstro… Entretanto, se a guarda baixar, a entrevista de Nick no Thaiti poderá ser o mais significativo prenúncio que testemunhei a respeito do surf competitivo… Numa época em que muitas verdades consolidadas têm sido desmontadas, eu nada sei dizer muito sobre o futuro… Mas, ao assistir a etapa deTrestles, uma coisa eu sei… Felipe está, entre nós, para escrever a história… Qual será a dimensão dos seus feitos? Basta olhar para o aqui e agora a fim de saber que ela não parece ter limites físicos…
Ps: Alejo não perdeu aquela bateria nem Trestles, nem na China….
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