Espera…
A relação do surfista com o mar é, essencialmente, pontuada pela espera… Não há viva alma que, uma vez sobre uma prancha, não se viu obrigada a cultivar uma relação com o tempo alheia ao imediatismo ou à imposição da vontade… Aguardamos a ondulação prevista, a série anunciada, a mansidão do fim de tarde e a promessa de uma viagem sonhada em que o mar inteiro será somente nosso… Com a idade e a imersão no mundo do trabalho, o desejo de uma suspensão nos afazeres quase sempre encontra endereço no vai e vem desocupado da arrebentação… Eu, confesso, gosto de tudo que envolve a onda surfada… da remada, por vezes, cansativa; de sentar na prancha e reencontrar a tranquilidade da respiração perdida… sobretudo, eu tenho especial afeição pelo momento em que assisto à onda levantar… Os trinta segundos que me separam do drop são, inevitavelmente, o instante em que o tempo suspende o seu fluxo para refazer, mais uma vez, a comunhão com a natureza… o futuro decide-se ali… no posicionamento certo…quando tudo acontece… É preciso, pois, encontrar a linha da onda… não lutar contra o mar, mas, sim, entendê-lo… compreender os seus desejos e, com sorte, corresponder àquilo que, a mim, se apresenta…
A espetacularização do mundo
Para quem ama surfar e apreendeu a ver beleza na intensidade de um campeonato, creio ser impossível permanecer, sem um sorriso no canto do rosto, quando somos obrigados a esperar pelo momento em que o mar permitirá, enfim, a realização das baterias previstas… No intervalo de uma chamada e outra, os fóruns especializados são invadidos por um cem numero de postagens ansiosas, irritadiças contra tudo e contra todos… Sejamos francos… quando o alvo é o comissário do Tour… bom, vá lá…. sempre concordo com os desagravos, corretos ou não… Confesso que nutro especial implicância contra o camarada… Surfista mediano que se regozija em poder decidir quando o espetáculo deve começar…
O fato é que a minha atração pelo surf competitivo, curiosamente, não encontra razão no ritmo compassado ao qual qualquer surfista ordinário vê-se obrigado a viver, dia após dia, em todas as praias do mundo… Surf competitivo, quase sempre, é a luta do surfista contra os seus limites físicos e mentais… Aguentar a pressão dos trinta minutos, explorar cada pedaço da parede, encaixar uma manobra na outra com a precisão de quem não pode errar são o contorno de uma luta sem fim do homem consigo mesmo… Qual a fronteira que limita a condição humana? Quem será capaz de driblar o destino e transformar-se em sujeito de sua vontade? As perguntas que antecedem a um campeonato, quase sempre, incidem no amplo universo da existência trágica, na qual cada um dos trinta e dois integrantes do tour se põem à prova a fim de trair as expectativas que, teimosamente, insistem em determinar o destino…
Não mintamos… quando uma etapa começa… com todos ali… as cartas são lançadas e, por mais que esperemos a surpresa, raro é encontrar algo fora do roteiro previamente escrito… Aquele cairá na terceira rodada, o outro chegará nas quartas… A semi-final ocorrera com os mesmos de sempre… Para mim, quem está nesse barco há muito, qualquer campeonato torna-se digno de lembrança quando algo escapa do previsto… Na verdade, o que menos me interessa é a espetacularização da contenda… Entenda-se espetáculo como sinônimo de uma previsibilidade em tom exagerado… Perceber o fim anunciado tem o mesmo gosto de assistir a um show em que conhecemos todas as músicas, sua seqüência e os seus arranjos… Quando a novidade resume-se ao jogo de luzes e a intensidade dos decibéis… o mundo parece-me sem graça, sem aderência…Há, pois, certo tédio em tudo isso… Afinal, o espetáculo sempre é, para mim, reflexo do previsível, espelho invertido de uma espera curiosa, de um aguardo verdadeiro pelo que está por vir… Campeonato quando é espetacular, no sentido que dou ao termo, é sinônimo de anti surf…. uma traição contra aquilo que aprendi e aprendo cada vez que entro no mar… Não sei bem por quê… mas o comissário do tour, e seus comparsas, constituem uma espécie de demiurgo do eterno retorno do mesmo… algo para lá de desprezível…
A sorte da reversão da medalha…`
Nos últimos dois anos, impulsionados pela troca de guarda, o Tour ganhou nova coloração. Afinal, ninguém movimenta o PIB do surf mundial sem que estruturas sejam abaladas, novidades surjam e verdades inesperadas se consolidem no lugar de certezas inquebráveis…
O tempo tem um curioso efeito, em tempos de fluidez, de transformar o tempo decorrido há pouco em pintura rupestre… 2014 terminou, Gabriel sagrou-se campeão… cinco etapas depois, o jogo é outro e as apostas mudaram de mesa… A cada parada do Tour consolida-se a sensação de que há muito tempo não estamos diante de um campeonato tão aberto de possibilidades… Ainda que algumas coisas ainda permaneçam previsíveis, a balança em 2015 pende sensivelmente à surpresa…
Vejamos JBay… Felipe perder, possível… Owen cair na terceira fase? Sério? Depois do que vimos em Fiji? Alejo voltar com tanta força? Torço por ele, mas o menino parece ter decidido tomar às rédeas do seu destino… E Gabriel… Bom, Gabriel parece gostar de contrariar o que se espera dele…
O surf competitivo, nesses tempos de espera, ganhou novo contorno para mim… E admito: não tenho tido nenhuma pressa em ver o ano terminar…
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