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sábado, 5 de dezembro de 2015

A borda na água de Bourez, o Floater de Gabriel e... sim, a vitoria de Mick em Sunset (2015)...

       Quando Darwin aportou em Galápagos, o jovem biólogo encontrou um ecossistema, de certo modo, intacto, em que as espécies pareciam imunes ao tempo dos homens… Em pleno desenvolvimento da modernidade, o “achado" daquele paraíso lançou, por estranho e enigmático movimento, uma nova luz sobre nós e sobre o universo de que fazemos parte… Desde que aprendi algo sobre Biologia durante os anos de escola sempre busco viajar para lugares em que eu possa encontrar algo estrangeiro ao meu mundo… O problema é que as brechas encontradas por Darwin durante sua empreitada no Pacífico selvagem do século XIX não parecem mais encontrar reflexo no aqui e agora… Como disse, certa feita, aquele personagem de Leonardo Di Caprio n'A praia: lástima, tudo parece ser igual ao que já conheço… Hoje, ausentes de fronteiras e comprimidos pelo tempo e pelo espaço, é raro encontrarmos algum endereço na terra que não cheire ao café da Starbucks… E vá lá…. O fato de ele ser bom não significa para mim que seja suficiente para matar a vontade de conhecer o desconhecido… Afinal, somente desejamos aquilo que já não temos…

                                                                               
                                                                          *****

      A máxima que abre esse texto somente não vale para a minha relação com o surf ocorrente no arquipélago… Lá, entre os meses de novembro e março, esperamos sempre encontrar o mesmo, o igual, a mesma toada que anima o nosso mundinho há mais de meio século… O tempo no Hawaii não respeita a ordem regular das coisas… Essa ambivalência entre o igual e o preservado torna o inverno no Pacífico Setentrional uma das mais instigantes aventuras da nossa época… Na verdade, de todas as épocas… Lá, a preservação de uma tradição que, alheia ao canto da sereia das vanguardas, impõe rituais próprios que, num reverso inesperado, torna as ilhas num reflexo decalcado e improvável da Galápagos de Darwin… Afinal, em terras de reis, importa, isto sim, avançar sem trégua nas pegadas encontradas em um caminho sem curvas ou atalhos… O surf no Hawaii, pois, possui certas afinidades eletivas com aquilo visto, há quase dois séculos, pela tripulação do Beagle… O mundo preservado, sob mecânica própria, inalterado… A cada temporada, a cada descoberta de novos materiais, a cada chegada de uma grande ondulação…, nós somos levados para um universo em que a medida da evolução dos surfistas se encontra, sobretudo, limitada pela carpintaria do surf de borda e pela coragem… Sim, não há surf no Hawaii sem coragem…
       Desconheço a razão de não ter, quando circunscrito ao vinte anos de idade, tomado um avião para o arquipélago a fim de encontrar-me com um surf que não conhecia, a fim de encontrar um nível do meu surf que, suspeito, jamais conheci… Por isso, sempre que encontro um jovem surfista, quando o assunto das viagens surge, sou direto… Vá para lá… Vá para lá enquanto ainda é possível escapar das obrigações do mundo do trabalho, enquanto o seu corpo e o seu espírito possuem forças para resistir às enormes exigências que o Hawaii impõem para quem o desafia…
O que, afinal, se encontra nessa terra mítica, cujos heróis nem sempre recebem loas por títulos ou canecos dourados? 

                                                                                  *****

Cesse tudo que a nova musa canta, pois, aqui, as regras que organizam a hierarquia das coisas parece obedecer um ritmo ancestral, cujas raízes se encontram cravadas no universos dos antigos… O endereço em que essa suspensão se realiza possui registro civil na geografia: o Litoral Norte da ilha de Oahu, mais precisamente numa bancada conhecida por todos nós como Sunset… Naquela direita de complexa formação, os homens separam-se das crianças justamente pela intensidade com que a borda crava na água… Não se trata aqui, deixemos claro, de uma hipérbole do surf de linha, arduamente cultivado nas terras continentais da Austrália…  O surf em Sunset organiza-se de outro modo, seja pela força das águas, seja pela exigência de grande resistência das pernas para execução de cada rasgada ou ainda pela imposiçãoo de uma sensível maturidade para encontrar o tubo, que nem sempre, abre-se no inside…. 
Diriam os mais conservadores que o surf de Michel Bourez foi gestado em barriga de aluguel… Nasceu no Thaiti, mas a sua verdadeira mãe é havaiana… O camarada realiza uma linha tão fluída naquelas veredas que parece ignorar a força das águas… Para mim, Teahupoo é, sobretudo, mais uma praia do Litoral Norte a despeito da enorme distância geográfica que separa Oahu da Ilha Rei; a única bancada no mundo que poderia reivindicar vizinhança à Pipeline, à Sunset e, por que não, à Bahia de ondas enormes…
Hoje, Bourez vê-se ameaçado na elite para o próximo ano porque a troca de guarda no tour obedece à regularidade da vanguarda… Quem não possuir surf acima da linha será, delicadamente, posto de escanteio… Nem concordo, nem lamento o movimento regular dos acontecimentos… Mas surf de raiz não prende ninguém ao passado, mas, isto sim, confere sustentação ao futuro… Não é tarefa difícil imaginar que os pleiteantes ao caneco serão paulatinamente relegados aos poucos minutos de surf de consequência presentes em qualquer filme sobre pranchas e ondas… Em meio aos aéreos com nomes inusitados de jovem tatuados, haverá sempre um Bourez para enfiar sem dó a borda numa parede de dez pés havaianos… E isso, creiam-me, deixa os mais moderninhos, a despeito da palavras de ordem em defesa do porvir, comovidos… Afinal, Sunset com mais de dez pés é capaz de arrancar inumeeros suspiros de admiração de homens de coração frio… 
Há, nessa segunda etapa da Tríplice Coroa Havaiana, dois personagens… O primeiro, Taitiano; o segundo, brasileiro… E o seu nome é Gabriel… Esta bem que Mick ganhou o evento; está bem que um uruguaio residente em Santa Catarina provocou enorme admiração; está bem que o menino com idade legal parece ter provado que a Australia não secou o rio de onde nasceram e ainda nascerão talentos sem fim… Mas, de tirar o fôlego, somente Gabriel… Não me lembro de ter ficado tão perplexo com uma manobra como no instante em que assisti `aquele Floater sem medo do amanhã. Estamos diante de um fenômeno… O modo como tudo aconteceu… vá entender… Sempre acreditei que essa era uma manobra para realizarmos em ondas de fim de semana, na melhor das hipóteses com seis pés de face… Coisa moderna… Mas aí vem o filho do Charles, de costas para onda, sem nenhum instinto de sobrevivência, para lançar-se em Sunset numa aventura que bem poderia ter lhe custado os joelhos…
O mundo, nesse momento, parou….Eu teria dado dez sem culpa ou resignação… Afinal, o inesperado sempre deve valer a nota máxima… O surf de Gabriel naquela onda comprovou, mais uma vez, a tese de que a introdução de uma nova espécie em um ecossistema estranho muda as regras do jogo… Altera-se a evolução natural… O experimento é simples…. Lance um bicho estrangeiro num habitat preservado e a linha natural de seleção dos mais fortes e adaptados em detrimento dos débeis e frágeis sofrerá consequências inimagináveis… O conhecido surf em Sunset jamais será o mesmo porque Gabriel provou ser possível o impossível… O sonho de Darwin em ver preservado Galápagos para que pudéssemos assistir, in loco, a materialização de suas teses não encontra reflexo no surf realizado no Havaii… Isso porque o arquipélago sempre estará aberto a camaradas como Gabriel… E, pasmem, eles são tão poucos que acreditar ser isso um fenômeno recorrente seria uma irresponsabilidade com a realidade. Para mim, o camarada junta-se, mais uma vez, ao seleto grupo de surfistas que sintetizaram escolas, tendências e tradições… Slater, Thompson, Carrol, Irons, Currem, Lopes…


No caso, Gabriel provou ser possível alinhavar o surf de borda e a coragem ao espaço que se abre além da linha da onda… E isso é tão raro como ver um elefante voar…

3 comentários:

Fesurfattack disse...

Muito bom o post, parabens!

Arthur disse...

João, mais uma vez, ótimo texto.
Não irei me alongar no comentário como de costume, pois já estou na tensão pré-Pipe, rs.
Abs!

João Guedes disse...

Arthur;

Camarada, esse blog é também seu. Os comentários são sempre precisos. Espero, em breve, os textos mais longos..
abas João