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quinta-feira, 30 de abril de 2015

Júlio Adler

Há muito, eu ensaio escrever uma série de textos sobre os camaradas que escrevem sobre surf.. Os meus prediletos… Sou um leitor ávido de textos a respeito do nosso mundinho. Devo confessar que não é fácil encontrar, em meio aos inúmeros blog, revistas ou sites especializados textos que escapam do lugar comum… Sempre achei desagradável ler algo que esperava ler. Texto bom, para mim, é aquele que narra uma história que não consegui ver, que revela algo óbvio que não consegui enxergar. Por sorte, a escassez, nesse caso, não implica ausência de qualidade, pois, quando ela aparece estruturada em sentenças escritas na língua pátria, pasmem, ela não deve nada a ninguém… Entre um campeonato e outro, aproveitarei para publicar alguns textos sobre os meus escritores prediletos… A série começa com aquele que julgo, de antemão, o melhor de todos… Júlio Adler.


O primeiro encontro…

Quem me apresentou os textos de Júlio Adler foi um camarada de longa data chamado Chocolate… O rapaz tinha um bom blog sobre o nosso esporte, o qual abandonou logo que se mudou para Austrália… Lembro-me de um post em que chamava Júlio de mestre e tecia muitos elogios ao Goiabada, o melhor site que encontrei em anos… Pena que anda algo abandonado…
À época, o Goiabada trazia, na primeira página, o arquivo de textos escritos por longos anos, uma diversão… O conjunto de narrativas apontava para tantos lados do nosso universo, tantas facetas dos personagens que integram o imaginário de quem, algum dia subiu numa prancha…. algo impressionante… Havia no Goiabada uma diversidade enorme de temas e abordagens… Por semanas, dediquei-me a ler as análises e perfis cuidadosamente desenhados… De passagem, é preciso afirmar que os textos sobre Neco Padaratz, seja qual forem eles, formavam o mais bonito e sensível corpo de crônicas que li sobre surf.

O segundo encontro…

Por volta dos meus trinta anos, o meu tempo dividia-se entre aulas numa universidade e consultorias para agências de publicidade… Nesse período, a instituição na qual trabalhava promovia, uma vez ao ano, uma semana de palestras para convidados a fim de fomentar nos alunos contato com o mundo que se abria para além da sala de aula… Lembro-me de ter sugerido para direção uma mesa sobre surf… Mesmo sem a repercussão do título do Gabriel e sem a tempestade de mídia a qual estamos, hoje, submetidos… a mesa emplacou… Tomei coragem, e escrevi um comentário em um dos textos do Goiabada… “Caro Júlio Adler; sou professor de uma instituição, faremos uma mesa, gostaria de contar com a sua presença; se topar, mandamos passagem”. Nunca havia visto o camarada, mas acredito que o modo inusitado pelo qual o convidei deve ter contribuído para aceitá-lo.
O primeiro contato com Júlio, confesso, foi uma surpresa. O camarada parece estar sempre em suspensão… Há uma certa displicência em sua postura, volta e meia quebrada por algum comentário preciso ou a manifestação de sua memória sem precedentes. Graças a ele, tornei-me um leitor ávido do Surf Journal, de livros sobre o nosso mundinho.. A palestra, ela mesma, não foi grande coisa, acho que ele deve ter ficado nervoso com tantos alunos, as cadeiras de couro, as toneladas de mármore do edifício… Passamos o dia juntos… Tornamo-nos amigos desde então… Alguns telefonemas esporádicos, planos para fazermos algo juntos…

O estilo…

Antes mesmo de decidir escrever sobre pranchas, praias, vagabundagem e campeonatos, Júlio, entre uma cerveja e outra, disse-me: sempre quero contar uma história de um modo diferente… A sua escrita lembra os grandes cronistas modernos… Os acontecimentos e as suas descrições cedem lugar para uma cadeia de impressões, organizadas por uma escrita limpa, carente de adjetivações, orações subordinadas e conjunções. As frases compõem imagens as quais, na maioria das vezes, são subjugadas a fragmentos de memória… Júlio, acredito, é um legitimo herdeiro da mais elegante tradição na qual se encontram Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Millor… O olhar dele antevê por uma fresta certos detalhes, desapercebidos por grandes acontecimentos… Não sei bem o que acontece quando elege essa ou aquela cena, esse ou aquele personagem… Para nós, sempre submetidos a uma ordem de informações massificada, repetitivas e repleta de lugares comuns, os textos do Júlio são uma rajada de novidade e inteligência…


Novos ares…

A surpresa é perceber que um camarada como ele possui uma produção impressionantemente diversa e intensa… A empreitada do séries fecham, o live surfe, as colunas em duas revistas especializadas e um blog, insisto, irresponsavelmente abandonado, dão uma dimensão da capacidade de gerar conteúdos a respeito do nosso universo… Uma vez, durante um jantar com João Valente, editor da Surf Portugal, falávamos da nossa incompreensão de não ver publicado um livro com as crônica do Júlio bem como um programa regular em algum site ou tv em que ele pudesse falar das coisas que lhe interessam… Quem sabe? 

A contracultura…

O fato é que o convívio com Júlio, a leitura de sua produção, e os achados deixados aqui e acolá traçam um contorno de uma certa resistência ao fluxo regular das coisas… Há um cheiro de passado em sua abordagem, algo que nos remete aos sentimentos dos anos setenta… Hoje, imersos no tempo das metas, consumo exacerbado e construção de carreiras, Júlio é um desses camarada capazes de nos lembrar que existe outras ondas paras os quais os nossos olhos devem voltar-se…


Ps: para quem não conhece… lá vai o universo em que ele aparece…

colunas na Hardcore e na Surf Portugal…
Site Live Surfe
Youtube: sériesfecham…

espero que se divirtam
no próximo, Júnior Farias




domingo, 26 de abril de 2015

A última utopia do século XX - parte 2

acabei por encontrar no computador a segunda parte... aqui vai..

Em tese, um artigo deveria, pela sua natureza, encerrar-se em si mesmo à medida que os argumentos e as considerações a respeito de um determinado assunto sejam, embora de modo condensado, suficientemente claros. Todavia, há momentos em que, por força ou circunstância, somos levados a retomar certos assuntos, ora para desenvolver um ponto ou outro que, por ventura, necessite de um aprofundamento, ora porque o debate suscitado por um determinado artigo instigue a formulação de novas reflexões.  Esse parece ser o caso de um texto escrito por mim para a Waves, cujo título é “A última utopia do século XX”.
A ocasião, discorri sobre a tensão que há entre as imposições, simbólicas e materiais, características do capitalismo avançado - tais como a competição, a idolatria do indivíduo e a segmentação mercantil - e o aspecto aurático, imaculado que o surf possui no nosso imaginário. O termo utopia, originalmente cunhado por Thomas Morus no ínicio do século XV e cujo significado é o não-lugar - foi evocado por mim para nomear esse processo, justamente, porque ele, segundo acredito, representa esse sentimento de alheamento que o surf provoca em quem o pratica. Afinal, a arrebentação, cheia ou não, imprime em nós que pegamos onda um efeito mágico capaz de purificar-nos da correria cotidiana, das apurrinhações do trabalho e, em alguns casos, dos impasses próprios da nossa vida afetiva.
Não é estranho, contudo, que tais efeitos sejam vistos, na maioria dos casos, como sinônimos de emancipação e liberdade. Afirmar que o desejo por esse sentimento já é, por si só, sintoma de uma forma de sociabilidade própria do capitalismo parece, para muitos, uma heresia. Ora, vejamos o problema mais de perto. Não creio que haja algo mais próximo do mundo das “prateleiras” do que acreditarmos que uma das faces da felicidade se encontra na qualidade dos estímulos sensoriais. O prazer pelo “drop” íngreme, pela sensação provocada pela prancha que desliza sobre a parede de água translúcida ou do repuxo sentido pela violência de uma batida contra lip refletem algo muito próximo do prazer que temos ao comermos um prato bem temperado, ao assistirmos um filme repleto de efeitos especiais ou de ouvirmos uma música no volume máximo. Tudo isso, por estranho que pareça, é sintoma de um mesmo mecanismo de regulação dos nossos sentidos, produzidos pelo mundo mercantil. Acreditar que haja no surf um sentido, por si só, de resistência contra o mundo real é ignorar o vínculo que esse esporte possui como o mundo real.
O fato é que o crescimento do surf com seus novos adeptos não pode ser credenciado, unicamente, as “garras” afiadas da indústria do surf. As propagandas não são, no caso, o estímulo para a prática do esporte. Pelo contrário, se examinarmos a natureza dessas propagandas veremos que elas são feitas para convertidos, e, não, para quem desconhece os códigos e valores dessa tribo. No entanto, é possível que haja um número muito maior de pessoas que pegam ondas, alheias ao nosso pequeno universo, do que indivíduos capazes de elencar, numa rápida piscadela, quais são os dez melhores lugares para surfar esquerdas no Brasil ou os cinco últimos campeões da ASP. 
  Utopia, certamente, é um termo bastante desagradável para quem se agarra, com unhas e dentes,à crença de que o seu esporte preferido é, na verdade, uma a espécie de torre de marfin, limpa e intangível à miséria da vida ordinária. O problema é que somente a palavra Utopia cuja acepção remete para aquilo que desejamos ver materializado, poderia torna possível o seguinte paradoxo: eu desprezo a indústria do surf, a competição, as propagandas em cores berrantes com as quais as marcas apresentam a sua nova coleção para as lojas especializadas, mas gosto muitíssimo da qualidade desses produtos, tais como das roupas de borracha e das bermudas que secam dois segundos depois de eu sair do mar. Ora, o avanço técnico das mercadorias não pode ser desvinculado da concorrência entre as marcas na busca por novos compradores. Entender que há uma separação desses dois elementos que compõem as mercadorias produzidas pela industria do surf é acreditar que o verso de uma folha de papel não seja, na verdade, as costa de sua face.
A questão, por esse prisma, não se dá por encerrada. Mais eficiente do que negar a relação entre o mundo moderno e o surf, creio ser necessário estreitar essa relação para que possamos nos servir do traço utópico de nosso esporte para modificar algo do mundo real. Foi justamente isso que pretendi dizer com a necessidade de criarmos novas carreiras no surf, quando da publicação do meu último texto. Isso porque o surf, enquanto esporte, compreende, ainda que de modo utópico, um desejo de integração e respeito com a natureza. O sentimento de completude que temos no line-up contrasta e muito com o modo predatório com o qual o Capitalismo se desenvolveu nos últimos séculos. 
Responsável pela dizimação de inúmeras populações indígenas, pelo desmatamento de grande parte da mata nativa, pela imposição de um modo de vida que parece, hoje, imperativo para todos nós e, sobretudo, pela destruição de uma super-potência como a União Soviética, o Capitalismo, nos moldes em que ele se apresenta parece não ter adversário à altura. Não sejamos hipócritas ou ingênuos para acreditarmos que um único indivíduo é capaz de resistir ao modo de organização do mundo da mercadoria simplesmente porque ele não come comida industrializada, recicla o seu lixo e não joga papel pela janela do seu carro. Afinal, somente podemos comprar comida orgânica por que ela é produzida e vendida nos super-mercados. E, se reciclamos o nosso lixo, é porque há usinas que vendem esse material para uma indústria que o reutiliza ora para reduzir o seu custo, ora para dizer para o mundo que ela é uma empresa consciente.
Uma andorinha não faz verão. 
Se não há adversário para o Capitalismo, é verdade que a única coisa que ele respeita é o valor do dinheiro. Seria, portanto, tão maléfico e horrendo propor que a indústria do surf amplie a sua área de atuação para além do circuito da nossa tribo e traga para junto de si algo que já é do mundo surf; isto é, o desejo de harmonia e o sentimento de preservação imanente a qualquer pessoa que pega onda? Ao invés de privilegiar, de modo prioritário, a incorporação em seus produtos dos valores da competição, ela poderia dedicar-se à construção de um circuito de consumidores conscientes que se tornariam, de fato, fiéis às marcas em virtude do compromisso que elas tivessem com a nossa utopia.
Possivelmente, essa mudança de foco ampliaria, consideravelmente, a inserção dessas empresas no mercado, a sua interface com o mundo e, consequentemente, a demanda por profissionais eficientes e comprometidos com a causa. Poderia haver, de um modo mais orgânico e eficiente, parcerias com os setores públicos e a sociedade civil organizada a fim de educar a população para a necessidade de preservarmos a natureza, a nós próprios e ao outro, que, pacientemente, espera, ao nosso lado, a série arrebentar.
O Surf pode e deve modificar as relações mercantis, principalmente, naquilo que tange o campo simbólico dos valores. Todavia, isso passa por uma transformação material, em uma palavra: pela reformulação do modo como desejamos nos representar diante de um universo muito mais amplo do aquele que acreditamos pertencer. 

Eu gostaria de ressaltar que não se trata de deixar o surf ou os surfistas em paz. O que proponho é o contrário: não deixemos o mundo em paz. Essa é a razão de eu acreditar no poder transformador da última utopia do século XX.

Ultima utopia do século XX

Primeiro texto publicado... isso faz tanto tempo..

A última utopia do século XX.

Se eu pudesse realizar uma comparação, estritamente pessoal, entre os anos 80, época em que comecei a surfar, e o presente, poderia muito bem demarcar os limites e as diferenças desses dois momentos pelo modo como todos nós, surfistas ou não, passamos a nos relacionar com os valores de eficiência técnica, profissionalismo e individualidade. Para quem tem mais de 30 anos, como eu, as últimas duas décadas do século XX, no Brasil, constituíram para a nossa sociedade uma espécie de período de aprendizado a respeito do capitalismo nos moldes estabelecidos pela globalização. Foi preciso adequarmos a nossa sensibilidade à diversidade de produtos expostos nas prateleiras, ao aumento sensível da concorrência no mercado de trabalho e, sobretudo, a incorporação dos muitos espaços simbólicos de liberdade pela industria do entretenimento e do turismo. Anos atrás seria impossível realizarmos viagens a lugares inóspitos, repletos de boas ondas, através de uma agência de Turismo especializada em surf trip. Tampouco não creio que o surf como o skate, antes manifestação clara da contra-cultura, se tornassem uma opção para uma carreira, desejada e respeitada por inúmeras famílias brasileiras.
O mundo mudou e essa mudança exige uma nova compreensão do que está em jogo, dos desafios que devemos enfrentar para entendermos como nos posicionar frente a um cenário em que necessitamos, cada vez mais, resgatar os sentimentos de liberdade provocados por ondas perfeitas, solidão do line-up e o cheiro da terra molhada de uma trilha que desenboca na praia. Essa necessidade é tão verdadeira que grande parte da industria do surf, muitas vezes de modo errático, constrói a imagem de suas marcas a partir da promessa de que os seu produtos possam vender algo desse sentimento. O surf é, nesse sentido, a última útopia do século XX. 
Para minha geração, por exemplo, que já sentiu a liberdade da primeira juventude escorrer pelos dedos e, hoje, se encontra nos milhares de escritórios das grandes cidades brasileiras, o sonho da ondulação perfeita, em uma praia qualquer, confunde-se com a profissionalização do surf e a torcida pelos bons resultados de nossos competidores. Vivemos um dilema, cindidos, entre o desejo de que a praia se encontre vazia no fim-de-semana e a possibilidade de vermos, acidentalmente, um jovem capaz de tornar-se o nosso mais feroz competidor, apto a trazer para o Brasil o tão esperado título mundial.
Em tese, acho que vivemos uma espécie de cabo de força interno, isto é: ora acompanhamos, pela internet, os campeonatos a espera da vitória de nossos pares, ora gostaríamos que tudo desaparecesse para que  somente o nosso carro fosse visto estacionado em frente ao pico. Sem ninguém, sem competição. Não se trata de fazermos uma escolha, mas de compreendermos que não há escolha a fazer. O surf, hoje, é tanto a disputa da bateria homem a homem como um grupo de amigos que passam parafina em suas pranchas antes de uma caída num mar perfeito. Se não estamos diante de uma opção, é necessário que sejamos capazes de contemplar essa ambivalência, característica do nosso tempo, seja no desenho das mercadorias da industria do surf, seja   quando se projeta uma carreira para um jovem surfista que, embora talentoso, não tenha desejo de ganhar campeonatos. 
É preciso, aqui, entendermos que a construção dessas duas formas de vivermos do surf exige duas carpintarias distintas, pois o que se vende e o que se compra, nos dois casos, são coisas diferentes. O importante é saber: 1) como a indústria deve se posicionar nesse cenário?; 2) como auxiliar os novos surfistas a entenderem o que precisam incorporar para terem êxito nessa profissão, seja como profissional de competição, seja como modelo da liberdade e da utopia?

O fato é que a industria ganhou nas duas últimas décadas um repertório maduro e bastante eficiente no que tange a promoção do surf profissional como sinônimo de competição. É preciso tira o chapéu para toda uma geração que se empenhou com extrema competência em construir um parque industrial pujante e, por isso, admirável. Todavia, é preciso ampliar os horizontes, criar novas formas de ação que tragam para junto de si o sentimento de liberdade, inerente ao esporte. A fim de ilustrar o que digo, lembro de, certa vez, estar junto com minha filha no line-up quando ela tinha sete anos e ver se aproximar um homem, acima do peso e com seus quarenta anos, e dizer-nos: o mar tá pequeno, tem muita gente para disputar poucas ondas, mas eu não pude deixar de dar uma caída hoje. Não aguentava mais um instante dentro do meu consultório. Parabéns por ensinar a sua filha a surfar. Afinal, surf é vida.” Esse dentista, quem nunca mais vi, expressava ali algo muito além dos limites impostos pelo palanque de um campeonato, da voz de um locutor ou da prateleira da surfweare. Ele, possivelmente, queria expressar que, naquele mar flat, se sentia realmente feliz. Como seremos capazes de oferecer para esse dentista produtos que representem esse sentimento? Como devemos nos portar diante de alguém que, alheio ao modo como a industria do surf tem se manifestado nos últimos anos, acredita ser o surf algo essencial para a sua vida?

Porque o problema se delimita nesse circuito, talvez devêssemos pensar em novos modos, além daqueles que possuímos hoje, de construirmos carreiras dentro do surf. Entenda-se: a capacidade que um indivíduo possui de reverter o seu trabalho em lucro para uma empresa. No que tange a industria do surf, é preciso saber que o desejo de compra está ai, do nosso lado, na tela de qualquer computador de quem busca, em meio a papelada do trabalho, saber as condições do mar para sábado. Será isso, de fato, um produto?

Jadson... o filho de Peterson...

Publicado setembro de 2014


A consciência de que não somos o sanguinolento.
Mar pequeno, prancha novinha, sol. Entrei como criança, depois de uns 20 minutos a passar parafina, imaginando as manobras que, quem sabe, conseguiria fazer nos próximos meses. Sonhava com a minha evolução enquanto transferia, magicamente, as qualidades daquela 6,2 para o meu surf de 41 anos, intermitente e sem muitas possibilidades reais de encontrar dias melhores do que aqueles vividos na juventude. Resultado, a coluna travou. Coisa de velho que, por pura tolice, acha que tem 18 anos. Três semanas de molho, viagem para o Havai cancelada, passagem desmarcada…. O médico foi categórico, frente à minha completa insegurança de ficar em pé: se fosse uma viagem curta, você poderia ir… Por puro egoísmo, maldisse quem planejou o arquipélago como palco final desse campeonato de 2014. Se fosse entre o Rio de Janeiro e Santa Catarina.. ah, se fosse… Egoísmo senil…
Na cama, entre uma série e outra, um filme e outro, algumas páginas de um romance velho; eu resolvi publicar alguns textos que escrevi e nunca postei. O primeiro deles, um texto sobre Jadson André, escrito antes de viajar para Peniche. O vídeo acima somado à dor constante pareceram-me motivo suficiente. O determinante, contudo, é a reminiscência do sorriso maroto do rapaz, na Tasca do Joel: você não verá esse campeonato, meu! Nem a final em Portugal, nem a sonhada temporada em Oahu. Que o vatícínio do camarada não se estenda por 2015….
Vá lá.
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Quando a qualidade impõe uma revisão de parâmetros
Quando se faz o balanço sobre a carreira de um atleta de alta performance, é natural que analisemos, além dos seus resultados, o momento em que se divide o tempo, o antes e depois. Às vezes, não precisamos estar diante de um E.T., cuja história, de tão extraordinária, parece inverossímil para identificarmos algo que saiu do previsível, que, pela sua significação, se revela um rito de passagem, um adeus ao passado ou um flerte com o futuro.
Jadson André é um desses camaradas que, aos pés de seus 26 anos, coleciona alguns desses momentos. Bastasse apenas um, coisa rara hoje em dia, para que o rapaz, boa praça e generoso com os seus, fosse lembrado nos livros de história. O começo relâmpago na divisão de acesso, o backside nervoso e afiado na África do Sul, quando ninguém acreditava ser ele capaz de fugir da regularidade dos aéreos em ondas pequenas, o campeonato vencido no Brasil e…, depois disso, um certo ostracismo. Não me lembro, nos últimos tempos, de um estilo de surfar ter sido vilipendiado como o do menino do Rio Grande do Norte. Exceção feita a Peterson Rosa, creio. Surfava no oco, fazia na onda coisas inacreditáveis, embora tudo isso fosse visto como algo menor perante o seu estilo, algo abrutalhado. Fazer o quê? Peterson sempre foi um dos meus surfistas prediletos.
Suspeito, e aqui é realmente uma suposição, que, a despeito dos recados dados nos primeiros anos, nós brasileiros ficávamos algo desconcertados com o modo pelo qual a sua prancha insistentemente interrompia o fluxo natural entre a base e o lipe. Havia, no ar, certo pesar em não encontrarmos na nova geração; pois, pasmem, Jadson já foi considerado da nova geração de surfistas brasileiros; um sucessor à altura do estilo de Fábio Gouveia. Sempre desejamos, outra suposição, que nossos surfistas fossem equivalentes, em estilo, àquele de alguns falantes de língua inglesa. Ser progressista, ter coragem, surfar com o fundo colado no lip nunca foram qualidades suficientemente valorizadas por nós. Se há arestas a aparar? Claro. Se, a despeito de um juízo equilibrado, desmerecemos os nossos porque não aguentamos comparar-lhes ao surf de primeiro spalla de Joel ou de Fanning; isso, sim, deveria suscitar certa reflexão
Parece que, em algumas situações, os fóruns especializados, daqui e de outros mares, foram muito pesados com Jadson. Isso não implica afirmar que a crítica, quando construtiva, não deva existir. Por vezes, precisamos que alguém olhe para aquilo que nós mesmos não conseguimos enxergar, pois só assim há evolução. O problema surge quando, depois de sacramentados todos os juízos, costuramos um veredito final a respeito de alguém e algo novo, inesperado, surge para emabaralhar tudo aquilo que supúnhamos saber. E ai, meus caros, o que devemos fazer? Pôr tudo em suspensão para alinhavar os fios que se soltaram pelo caminho. Essa é a minha hipótese.
A remada.
A etapa do Tahiti será lembrada, esse é o grande esforço da mídia especializada e com todas as justificativas, como a maior de todos os tempos. Dos dias de competição, pelo que vi e li durante as minhas incursões no vasto e sombrio território da web, três acontecimentos ficaram e permanecerão na memória: a semi-final entre o sanguinolento e o diabo loiro; o atrevimento e a coragem do grandalhão australiano e a vitória da maior esperança do surf brasileiro. Concordo com tudo. Afinal, fiquei paralisado com a luta do homem de 42 anos contra o moleque de Oahu; estupefato com a irresponsabilidade do irmão da talentosa surfista aussie e, sobretudo, enlouquecido e sem voz com o coroamento do filho do Charles.
Todavia, o que não consigo esquecer, o que me enche de admiração, é o momento em que Jadson, num mar enorme, depois de cair em uma onda, dispensa o apoio do JetSki e vira a sua prancha em direção à arrebentação. Por cerca de dois minutos, o camarada crava com força e velocidade as suas mãos na água. O ritmo da remada era acompanhado pela perplexidade dos narradores em língua inglesa frente à tamanha ousadia. Simplesmente, eu não conseguia acreditar no que estava a se passar. Afinal, Jadson não é exatamente um touro. Estatura mediana e relativamente magro. Como era possível naquele mar, no qual muitos integrantes da elite, de modo nem sempre sutil, puxaram o bico de suas pranchas, um surfista que colecionava inúmeros 13º lugares, com fama de merrequeiro e taxado como alguém que não merecia um lugar do WCT fazer aquilo? Como era possível? Que sentimento era esse que o fazia desafiar aquelas ondas, de peito aberto e olhar fixo?
Ali, Jadson contrariou a natureza, as vezes em que não conseguiu passar do terceiro round, o olhar cínico de seus críticos… O que eu vi, ainda que essa não fosse a intenção dele, era alguém a dizer com voraz contundência: é meu!, é meu!
Lembrei-me imediatamente de um conto de Rubem Fonseca, O Cobrador, o qual recomendo vivamente a leitura. Trata-se de uma pequena narrativa em que um homem sai pelas ruas de uma cidade grande reivindicando tudo o que acreditava ser seu e que lhe fora sempre negado. Jadson, naqueles dois minutos no Tahiti, entrou definitivamente nos meus livros de História como um dos surfistas mais corajosos e determinados que tive a oportunidade de acompanhar. Do Rio Grande do Norte, de ótimas ondas de 1 metro, para a Ilha Rei, o combustível que animou esse menino de sorriso fácil foi um atributo, nem sempre lembrado como essencial para quem compete entre os grandes: a força de não quebrar jamais. Peterson deve estar orgulhoso de ver parte de seu sangue a correr nas veias de Jadson. Eu, por minha vez, de todo aquele campeonato, lembro, sobretudo, dos dois minutos rumo à arrebentação.
Ps: na cama, texto longo.




Mineiro... novembro de 2014

Publicado em novembro de 2014

Mineiro... Os adjetivos para o camarada quase sempre resvalam em sua determinação, em seu compromisso com a vitória. Poucos surfistas no circuito possuem tamanha obsessão em vencer. De farto aerealista dos primeiros anos do WQS para transformar-se em um dos mais regulares surfistas de borda do circuito, Adriano percorreu mais de uma década de treinos, de entendimento dos critérios de julgamento e, sobretudo, de críticas vorazes de além mar. Suspeito que essa metamorfose ocorreu sob uma enorme pressão, embora ela não tenha origem no universo anglo-saxão, irritadiço com o amadurecimento daquele menino obsessivo em trazer para sua terra a coroa de campeão mundial. O principal responsável pelas noites mal dormidas após algumas derrotas, pela crítica mordaz contra a perda de concentração em algumas baterias e pela culpa de ainda não saber dominar algumas das ondas clássicas do planeta é e sempre foi o próprio Adriano. Dessa enorme cobrança consigo, nasceu a força para ganhar em Bells e Jeffreys. A cada ano, a cada etapa vencida do planejamento que desenhou ainda menino, reforçava-se a certeza de que diminuía a distância entre ele e o ambicionado título mundial. A consequência para nós foi uma crescente admiração pela força desse rapaz. Se estivéssemos em guerra, chamaria, em primeiro lugar, Adriano para se juntar ao meus na trincheira. Tenho a sensação de que a sua crença é capaz de tudo, inclusive de transformá-lo num dos competidores mais temidos do tour...
O problema é que esforço não implica necessariamente certeza de sucesso. Isso porque a vida não é justa. Alguns obstáculos precisam ser superados para que o caminho para o caneco se faça. Não se trata de talento, o que ele possui. Adriano precisa, isso sim, estar mais relaxado frente aos olhares nervosos de seus adversários. Relaxado não significa, aqui, descompromisso. É hora de aproveitar a maravilha que é aplicar aquela rasgada no oco, de tirar aquele tubo impossível... É hora de se divertir, pois acredito que isso irá aproximá-lo de seu objetivo, não afastá-lo. Está na hora de tirar um pouco da pressão que, por anos, repousa sobre as suas costas. Afinal, Adriano tem a profissão mais divertida do mundo. Às vezes, precisa-se lembrar disso.
De minha parte: muita torcida e enorme admiração

Texto para o título de Gabriel...

Publicado dois dias depois do caneco em Pipe...

Para os mais velhos, não é desconhecida a memória de grandes esportistas, de vitórias emblemáticas, de herói daqui ou de terras distantes cujos feitos uma vez nos encheu de respeito e admiração. Ao rememorar o passado, mergulhar no breu da memória, tenistas, jogadores de futebol, meninas esguias do voley ganham corpo e densidade... Todavia, não me lembro de ter vivido uma emoção tão arrebatadora como a de ontem com a consagração de Gabriel nas areias do arquipélago.
O modo pelo qual se organizaram os acontecimentos que deram fim a uma espera de mais de três décadas traçaram um caminho repleto de simbologia e, por que não, constituiram uma resposta para quem ainda precisava de uma. O fato é que Gabriel e sua estória, além de comover qualquer pessoa cujos pés lambuzaram, alguma vez, a água salgada, romperam as fronteiras do nosso pequeno universo limitado por pranchas, roupas de borracha e narrativas de dias épicos com amigos em uma praia deserta do mundo. Gabriel e sua estória, sem que ninguém nos avisasse, tornaram-se um grito de desagravo contra todas as formas de opressão e de dificuldades escusas com as quais qualquer adulto uma vez ou outra teve de se haver. Tantas foram as dificuldades, as desconfianças... Tantas foram as dúvidas de que o mundo permitiria a vitória do talento... Por semanas, os entendidos e os novos admiradores do filho de Charles projetaram, nos inúmeros fóruns de discussões, os seus receios, as suas inseguranças contra a ASP, contra a porta de trás da mais famosa onda do mundo, contra os mais adaptados ao arquipélago...
O resultado... O que vimos ontem, entre lágrimas e uma estranha sensação de redenção foi o maior cala boca da história do surf e, quem sabe, entre os maiores da historia do esporte. O menino eliminou um dos grandes favoritos das casas de aposta, tirou um dez de costa para onda, quase levou um dos títulos mais cobiçados do surf... Até ontem, nenhum de nós seria capaz de prever o que aconteceu ontem... Ninguém... Eram tantas e tão poderosas forças contra o menino de fala tímida, sempre cercado pelos seus.... A sua vitória congrega, por isso, uma força que, malgrado a vontade de muitos de reconhecerem que os seus ídolos também são amados por pessoas estrangeiras ao universo das praias, comove a tudo e a todos...
Há algo que, acredito, une o homem comum ao caminho de Gabriel, algo que moveu milhares de pessoas para frente de seus computadores e celulares na noite de sexta-feira.... Sem que percebesse, no último mês, as rodas de conversa versaram sobre a bancada de Pipe... À medida que esse murmúrio avançava para além da areia, um certo ciúmes tomou conta de mim. Estranho e perverso sentimento... Afinal, Gabriel era de quem sempre surfou, de quem passou noites em claro a acompanhar os nossos meninos, de quem muito discutiu nos fóruns especializados...
O que não conseguia ver... Há algo de emblemático na estória desse menino que impede que ele seja somente nosso. A vitória dele se pôs, de modo nem sempre claro, contra o chefe proselitista, contra as dificuldades de uma formação precária, contra a concorrência desleal dos bem nascidos... Afinal, Gabriel venceu a ASP, os anos de aprendizagem em fundo de areia, mesmo Maresias sendo Maresias, e, sobretudo, a altivez de quem nasceu além mar... A sua estória é do surf, mas também é do mundo...
***
Hoje, acordei com estranho sorriso... Beijei as crianças, abracei a minha mulher... Contra as recomendações médicas cujo intuito eram preservar-me a coluna desgastada, fui para a praia...
Entrei na água, sobre um prancha enorme... As ondas pequenas davam uma sensação de lagoa... Ao meu lado, minha filha mais velha... Enquanto esperava a próxima série.... Chorei... Sem motivo, sem razão... Lembrei de ontem, dos dias em claro, da conversa nos fóruns....
A coroação de Gabriel foi uma linda resposta ao mundo e um enorme exemplo para todos...
O milagre tornou-se adulto... Como muitos de vocês, eu vi..... Depois de tudo, de refazer em lembrança a ordem desse enorme feito, resta apenas o obrigado ao Gabriel, ao Charles e à Simone... Afinal, foram eles que, no limite, possibilitarem a mim assistir à mais linda vitória de um atleta do esporte que tanto amo...

sábado, 25 de abril de 2015

Reminiscências de um texto escrito em 2010

Na última quinta-feira (11/2) acordei mais cedo para levar meus filhos à escola. Quando cheguei em casa, entrei na internet para acompanhar Pena Pro Noronha 2010, motivado pelas notícias de que no dia anterior havia rolado um mar clássico, com ondas grandes e atuações antológicas.

Abri o computador no exato momento da bateria do niteroiense Bruno Santos e vi, ao vivo, ele surfar uma onda, com drop atrasado que lhe rendeu nota 10 unânime. Vi o replay algumas vezes e não conseguia acreditar no que havia visto.

O tubo parecia não ter porta de saída e a velocidade com que as placas de água caíam era proporcional à certeza de que Bruno Santos não conseguiria, definitivamente, sair ileso daquela situação em que se metera. No entanto, para a minha surpresa, com extrema simplicidade e leveza ele encontrou uma linha que me parecia impossível para conquistar a primeira nota máxima do campeonato.

Enquanto tentava sair do estado de perplexidade provocado por aquela cena e buscava organizar o pensamento com o objetivo de encontrar uma explicação racional para aquele acontecimento, uma série de lembranças sem qualquer aviso rompiam a vigilância de minha consciência para levar-me ao tempo de minha juventude.

De algum modo, eu parecia estar dentro dos livros de Marcel Proust, romancista francês que para muitos é responsável por uma das cenas mais intrigantes e memoráveis da literatura moderna. No caso, o personagem principal de sua saga “Em Busca do Tempo Perdido” é levado involutariamente pelas memórias de sua juventude depois de comer, durante um chá, um pequeno bolinho de pão de ló, cujo gosto era o mesmo que sentira quando dos lanches oferecidos por sua mãe quando criança.

As imagens que surgem no livro a seguir são repletas de cor cheiros e personagens há muito esquecidos, mas cuja relevância poderiam explicar-lhe muito sobre aquilo que vivia em seu presente. Pois bem, a onda de Bruno Santos no Pena Pro teve para mim o mesmo efeito que o pão de ló provocou na personagem de Proust.

O fato é que as reminiscências do mundo para o qual eu fui lançado graças ao surfista de Itacoatiara, concentrava sem que eu suspeitasse algo capaz de me fazer entender aquilo que me causara tamanha perplexidade e admiração: a sua incrível onda, nota 10.

Na encruzilhada das minhas lembranças, havia algo que transcendia minha vivência pessoal para constituir um mosaico de referências que mais pareciam traços de um tempo que, perdido, se faziam presentes na linha mágica desenhada por ele durante o tubo inacreditável.

Afinal, de onde ela surgia? Como era possível tudo aquilo? Eu bem sei que, quando envelhecemos, somos capazes de observar o tempo que passou com distanciamento e constatamos, com certa perplexidade, que a nossa memória se confunde com a reminiscência de muitos.

Por vezes, temos a sensação de que a individualidade, tão cara e preservada por nós, se dissolve para transformar-se em característica de uma geração. As referências culturais, os traços constitutivos de nossa vivência pessoal tornam-se, por isso, referências de um grupo muito mais amplo do aquele circunscrito à memória individual.

É possível, portanto, que a evocação de certas reminiscências também implique, em tese, no compartilhamento de algo que nos aproxima de nossos pares, a construção de um elo característico de uma comunidade que, de modo enviesado, nos torna membros de um grupo forjado por experiências comuns.

O fato é que eu tenho, hoje, cerca de 40 anos de idade. Porque comecei a surfar em 1980, eu sou fruto de uma geração que vivenciou uma importante fase de constituição da industria do surf; a formação de importantes ídolos do nosso esporte que, hoje, são considerados ícones do surf brasileiro e, sobretudo, o início da formação de uma identidade cultural que, impulsionada por um conjunto de pessoas obstinadas, uniram esforços para criar revistas e programas de televisão especializados, nos quais se revelavam os acontecimentos mais significativos do universo dessa tribo.

Lembro-me, vivamente, de ver os VTs das etapas do Circuito Mundial no Realce, embaladas por trilhas sonoras compostas por Australian Crow, New Order e tantos outros que, sem a internet, somente eram acessíveis para nós quando alguém conhecido voltava de uma viagem do exterior com a encomenda, ardentemente desejada, de baixo do braço.

Havia algo de comum e solidário naquela geração de jovens surfistas que se empenhavam em transformar os discos em fitas K-7 e espalhá-las entre os amigos. Algo importante se anunciava e, sem sabê-lo, éramos todos sujeitos àquilo que estava por vir.

Comentávamos as performaces de Tom Carroll em Sunset, a última etapa de Bells Beach, o sonho de surfar em Nias e muitas outras coisas que víamos nas páginas da Fluir e nas matérias feitas por Ricardo Bocão e Antônio Ricardo.

Sentíamos que fazíamos parte de um grupo constituído por um conjunto de referências comuns que desejávamos compartilhar e cujos modelos se encontravam estampados em fotos de páginas inteiras nas bancas de jornal. Fábio Gouveia, Teco Padaratz e Vitor Ribas despontavam como o futuro do surf brasileiro e suas vitórias eram comemoradas por nós como do time de nosso coração.

Era uma época em que surfistas transformavam-se, creio que pela primeira vez em nossa história, em ídolos de uma geração. Lembro-me vivamente de ver na praia de Geribá, em Búzios (RJ), o Roberto Valério na praia e sair do mar para vê-lo surfar.

Olhava para aquele homem, relativamente baixo para o tamanho que a minha imaginação conferia a ele, com a certeza de que estava diante de um acontecimento que embalaria muitas conversas com os meus amigos quando retornasse ao Rio de Janeiro: “Cara, o Valério tava na praia! Ele arrebentou!”.

Havia também aqueles que se vangloriavam de terem compartilhado o line-up com Jójo de Olivença, Tinguinha Lima, Cauli Rodriges ou almoçado, certa feita, com o Antônio Ricardo em um restaurante do Leblon. Cada um desses acontecimentos era visto por nós como algo extraordinário e significativo.

Afinal, aqueles eram personagens distantes, inatingíveis, mas que, embora mitificados pelas lentes das câmeras, também eram pessoas de carne e osso que comiam em restaurantes e faziam uma caída de fim tarde em uma praia qualquer de uma grande cidade brasileira. Até hoje, tenho dificuldade em acreditar que esses caras eram como eu, tamanha a admiração que tenho por eles. Mas vá lá, todo menino tem os seus heróis e eles foram, por assim dizer, os meus.

Quem, como eu, tinha por volta de 15 anos na década de oitenta e tenha vivenciado essa época pode muito bem lembrar-se de histórias similares, embora embaladas por outras personagens e outros picos. De Norte a Sul, uma cultura do surf se afirmava e ganhava traços comuns, vocabulário próprio e sonhava numa mesma sintonia.

O curioso é que toda passagem de bastão de uma geração para outra também configura um momento de transição que comporta traços da anterior e anúncios de um novo tempo. Eu, como muitos, estávamos justamente no ponto de intersecção que separava dois instantes distintos da história: o da transgressão de uma juventude que buscou no surf uma forma de manifestação de liberdade, sintoma talvez dos anos 70, e outra que se afirmava como um grupo segmentado, munido de uma identidade comum, auxiliada por um conjunto de referencias divulgadas pelos meios de comunicação especializados.

Creio que meu contato com o universo anterior àquele que caracterizou boa parte da minha geração tenha sido aberto por uma pessoa mais velha, como aliás é comum a qualquer formação. Todo jovem, surfista ou não, possui um irmão maior, um tio ou um amigo de família que, por tamanha generosidade e afeto, abre as portas de um tempo que de outra forma estaria fechado pelas imposições imperativas do presente.


No meu caso essa pessoa foi um fotógrafo de cinema amigo de meus pais chamado Toca Seabra. Mais conhecido por ser responsável por um dos melhores filmes dessa década, O Invasor, de Beto Brant. Toca era um legítimo representante da geração anterior à minha.
Muito magro, ele não possuía em seu repertório nenhuma manobra moderna, tão pouco se interessava pela pontuação do Circuito Mundial. O seu surf era de uma simplicidade comovente, fazia a linha, drop e fluidez na parede da onda. Jamais lutava contra o lip.

O surf para ele, ao contrário do que eu próprio acreditava na época, era deixar-se levar pela ondulação. Com ele, aprendi muito sobre formas de manifestar-me que jamais imaginei serem de fato legítimas. Não era preciso buscar a radicalidade, mas sim uma espécie de harmonia com o mar. O surf para mim ganhava novos contornos.

Toca era um personagem egresso do movimento de contracultura. Trabalhara no Cinema Novo, suas histórias sobre o surf ignoravam todos meus ídolos, fortemente admirados por mim. Isso não significa que não fosse antenado, pois era.

Apenas sua sensibilidade parecia captar coisas que para mim eram de um outro mundo. Com ele conheci personagens que logo alimentaram minha imaginação. À medida que o Toca levava-me para desbravar, era sim esse o termo exato, praias que me eram inacessíveis especialmente por não dirigir, da Zona Oeste do Rio de Janeiro, eu transformava-me em ouvinte de histórias maravilhosas, cheias de contratempo, praias desertas e desprendimento que tinham algo de maravilhoso.

Tratava-se do “pessoal das antigas”, era assim que de um modo respeitoso e admirado me referia a Renan Pitanguy, Rico de Souza, Pepê e Tito Rosemberg. Histórias de coragem, mares imensos, picos secretos. Não que os novos não tivessem tais qualidades, pois tinham, mas aqueles surfistas formados nos anos 70 eram pessoas diferentes para mim. Havia algo de misterioso naquela geração. Eram desbravadores de seu tempo, que se moviam por uma paixão, para mim, algo estranha.

Nunca conheci pessoalmente nenhum deles, mas à medida que desbravava as “praias desérticas” da minha juventude, Grumari e Prainha, conhecia também um outro mundo, com outras trilhas sonoras - como disse Fred D’Orey certa vez - repletas de longos solos de guitarra.

A minha memória de juventude é justamente o contato desses dois mundos que de modo geral se mantém vivos em mim. Por isso, lembro-me de meu quarto na adolescência como a expressão desse encontro de gerações. Ainda posso ver minha primeira prancha, uma gun vermelha shepeada pelo Rico de Souza, ao lado de uma foto de Daniel Friedman grudada na parede. Na estante, algumas revistas de surf empilhadas e na TV, Ricardo Bocão apresentava uma matéria sobre a última vitória de Fábio Gouveia.

O fato é que o surf já possui uma história e, porque não, uma genética própria. E mesmo que não saibamos, somos todos herdeiros de uma tradição que em nós deixam marcas profundas, nem sempre evidentes, mas que nos constitui como membros de uma comunidade.

Ao ver a onda de Brunos Santos na Cacimba, acredito que a razão de meu alumbramento foi justamente ver concentrado em um único instante duas importantes matrizes da cultura surf. Havia ali algo de moderno materializado no espaço do campeonato, limitado pelo tempo da bateria e sobretudo pelo registro ao vivo proporcionado pela internet; mas havia também a linha despreocupada, o surf que não se degladia com a onda, o risco inconsequente. Em Bruno Santos, como em Rob Machado e no homem de outro planeta que é Tom Currem, a tradição se concentra como síntese.

Se o tempo de minha juventude foi o tempo em que as gerações se dividiram para poderem afirmar-se como representantes de um tempo histórico preciso, ele também foi o tempo de comunhão e harmonia. E era isso que, acredito, aquela onda me avisava.

Por isso toda astúcia capaz de catalogar e explicar as diferenças entre um período e outro de nossa história cai por terra quando em uma única onda somos levados à certeza de que os córregos que constituem nossa tribo desenbocam, vez ou outra, em um único e volumoso rio.

É nesse momento que, sem querer, a memória involuntariamente evocada serve para lembrar-nos o que, teimosamente, tentamos separar.

Trestles 2015 divisão de acesso: prognóstico

América… Prognóstico…


A onda mais apta a manobras do mundo… O parque de diversões do surf acrobático… A onda de linha mais perfeita… Os predicados para Trestles são, quase sempre, circunscritos ao mesmo campo semântico, o da perfeição… O que sabemos resume-se ao seguinte: lá, no norte da California, existe uma onda em que é possível testar todas as manobras criadas e todas as outras que, um dia, serão inventadas… Por isso certamente e também porque todos os olhos da indústria gravitam ao redor dessa praia, as tensões que um campeonato em Trestles afloram deixam qualquer surfista diante de um enorme desafio, somente comparado, guardadas às devidas proporções, ao que acontece no arquipélago, nos últimos meses do ano… 
Qualquer etapa realizada em São Clemente é, por essa perspectiva, o palco em que o surf de linha encontra a vanguarda… Poucos lugares são tão multifacetados quanto a praia que se abre abaixo da linha do trem… Na véspera da nona parada da divisão de acesso, o contorno de um prognóstico…


A ausência…


O ano de 2015 não tem sido fácil para Gabriel. Embora jovem, não é possível ignorar que o menino já experimentou, desde a sua entrada no WCT, altos e baixos… As expectativas, entretanto, sempre são altas ao redor do surf do filho de Charles… A ausência em Trestles, nesse momento, anuncia uma ambivalência. De um lado, resguardar-se dos holofotes e dos sentimentos provocados pelas primeiras etapas do tour pode ser algo bom para ele… Afinal, alguma coisa não parece soar bem…. Menos pelos resultados e mais pelo modo como Gabriel comportou-se nas baterias… Ao saber de sua conhecida inclinação competitiva, suspeito que o seu maior crítico é, nesse caso, o jovem de vinte um anos, campeão mundial de 2014… Por outro lado, ausentar-se de uma etapa tão importante, em que nada está realmente em jogo, revela-se uma oportunidade perdida para retomar os trilhos… Por vezes, uma atuação assombrosa vale mais do que o caneco. Gabriel precisa disso… 


O E.T.

Slater é, para mim, o surfista mais inteligente a administrar uma carreira. Desde a Gold, percebo uma pequena mudança no quadrante… O maior de todos os tempos parece ter abandonado algo daquela fome da vitória a qualquer preço para mostrar ao mundo que ainda se inscreve no seleto grupo dos surfistas mais espetaculares em atividade… Fique claro que perder uma bateria ou um campeonato ainda se revela algo muito dolorido para ele. Perder parece não ser uma opção váida para Slater… Entretanto, a troca de guarda indicou, e essa a minha hipótese, novos caminhos para trilhar… No caso, suspeito que assistir às últimas performances de João João foi muito inspirador para o E.T.
 Embora o mais novo sempre se inspire no mais velho, suspeito que, em 2015, Slater tem se espelhado mais em João João do que se supõe. Afinal, etapa após etapa, independente do resultado final, o mundo do surf surpreende-se com as apresentações do menino loiro… Para muitos, e eu incluo-me nesse grupo, ele é o surfista mais espetacular dentre todos. O ensinamento: surfe como se aquela fosse a última onda… Slater tem surfado assim… Quando perde, perde porque as coisas não deram certo, e, não, porque não demarcou para todos que ele pode fazer qualquer coisa com as pranchas sob os pés… 
Participa de Trestles para estar frente à industria, para brilhar e, sobretudo, para mostrar aos mais jovens que o rei não está nu…


Felipe

Nenhum jovem surfista australiano faz frente a Felipe… Quase nenhum surfista do mundo faz frente a Felipe em Trestles…. Felipe deve pensar… Essa é minha… Acho mesmo que um bom resultado na Califórnia será um excelente primeiro passo rumo ao Rio… Embora todo mundo aponte a necessidade do filho do Ricardo ganhar quilometragem em ondas de consequência, acredito que isso ocorrerá com o tempo… Por hora, Felipe é seríssimo candidato ao título de 2015 e o seu surf é o único que faz frente, quando falamos de espetáculo, ao filho dileto do arquipélago…


A torcida.



A minha torcida inconfessável recai sobre dois outros surfistas. David do Carmo e Pedro Henrique… Seria lindo que ambos fizessem um bom resultado na Califórnia. O primeiro porque merece, o segundo porque sempre torci por ele… 

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Divagações

Texto Publicado em janeiro de 2015


O mote
Nesse verão, a despeito das chuvas que castigam o litoral norte paulista e movem a nossa comunidade para um belo e comovente exercício de solidariedade, é possível sentir uma mudança no ar... As areias estão cheias de pais e filhos, todos com pranchas... Gritos de incentivo, orientações sobre postura e longas argumentações a respeito da distribuição do corpo na prancha cortam o som sincopado do vai e vem das ondas... Muitos inspirados pela relação de Charles e Gabriel tentam repetir a fórmula mágica... Todavia, pais e filhos quase sempre, com raras exceções, são apenas pais filhos... O surf, mesmo sem prêmios ou glória, pode e deve ser um importante campo de interação entre nós e as nossas crias, não mais... É Importante não nos esquecermos disso, sob o risco de sermos impedidos de ver o que realmente vale nas duas horas diárias dedicadas a ensinar aquele corpo mirrado a equilibrar-se sobre uma prancha de surf... Alegria e admiração... apenas...
O interregno argumentativo
Faço parte de uma geração de surfistas, cuja adolescência transcorreu entre o final da década de 80 e o início dos anos 90. Aos mais novos, é difícil acreditar que, àquela época, ainda era bastante raro encontrar, nas famílias, um apoio sólido para quem decidisse seguir a carreira de surfista profissional. Existiam, é verdade, alguns casos isolados, pelo menos é assim que me lembro dos poucos e esperados campeonatos destinados à garotada. É verdade também que, volta e meia, algum incentivo surgia: uma prancha nova, uma viagem com os amigos para uma praia mítica em um litoral selvagem… Hoje, distante no tempo e, por isso, com certo embaralhamento da memória, acredito que se tratava mais de um empurrão para o mundo do esporte do que, propriamente, um consentimento para uma carreira de surfista.
Muito se fala dos tempos da contra cultura dos anos 70, do espírito de afirmação da primeira geração de surfistas brasileiros, de onde surgiram quem, hoje, ocupa o lugar das lendas do esporte. Gente de espírito sólido, quem criou as bases da industria, os alicerces do nosso modo de ver o mundo. A minha adolescência, tal qual imagino ter sido daqueles que circundam os 40 anos de idade, ficou algo comprimida entre a fase heróica e o super profissionalismo do novo século.
A sombra de Fábio Gouveia e Teco Padaratz, as histórias a respeito de Neco, quem acreditávamos fosse, quando adulto, o maior de todos e, sobretudo, o talento de Vitor Ribas invadiam os sonhos de um cem números de jovens, loucos pelo mar e sequiosos para seguir os mesmos caminhos abertos por esses camaradas, responsáveis por desbravar o circuito e cravar, pela primeira vez, em terreno sólido a nossa bandeira. Suspeito que a euforia por cada degrau alcançado não era compartilhado pelos nossos pais: felizes pela vida saudável dos seus filhos, mas muito conscientes, segundo seus medos, de que o surf não era propriamente uma carreira. Para mim, isso nunca foi, de fato, um problema, uma vez que, surfista de talento mediano quando comparado aos bichos soltos da praia, sabia o meu desejo não encontrar endereço na realidade. De todos os campeonatos que corri, não recordo de ter tido qualquer resultado digno de lembrança. Gostava, mesmo, de ficar com o bando, conversar sobre as ondas e as aventuras; gostava, isso sim, de viver na praia.
A glosa
Para a maioria de nós, cuja idade atravessou a barreira dos quarenta anos, a constituição de uma família e a consolidação no mercado de trabalho, por caminhos nem sempre claros, afastaram-nos daquela vagabundagem, somente identificada por quem, algum dia, passou o dia na praia sem hora certa de voltar para casa. Acontece que, por sorte ou milagre, talvez nós tenhamos a oportunidade de reconstituir algo desse tempo. Sabemos quando isso acontece e, como num átimo, aquele sentimento do passado projeta-se intensamente no presente. O resultado: um novo sopro de vida parece varrer tudo, tal qual uma tempestade em alto mar.
No meu caso, tudo revelou-se no instante em que a minha filha Júlia, hoje com quinze anos, insistiu, com extrema veemência, para que eu lhe comprasse uma prancha de body board. A imagem é vívida. Nós, em frente a uma dessas lojas do litoral em que se vendem tanto panelas como roupas de banho. Na vitrine, pranchas de isopor branco sobrepostas num pilha de cerca de um metro. O corpo teso, o olhar decidido. Dizia que desejava surfar comigo e não era capaz de destitui-lhe dessa idéia fixa. Ela tinha apenas três anos de idade e muita convicção.
Das primeiras caídas, lembro-me do medo de minha mulher, do sorriso no rosto da pequena a cada onda surfada. Não tardou para que lhe desse uma dessas pranchas de espuma, as mesmas que invadem as inúmeras escolas de surf do nosso litoral. Surpresa… No primeiro dia, ela estava em pé, corpo mirrado, braços abertos contra o vento, vestida com um óculos de mergulho, o qual, segundo ela, lhe protegia da água ardida do mar. Essa era a resposta que sempre dava aos muitos questionamentos do pai a respeito daquele inusitado apetrecho.
O talento da menina já era sentido nas praias, com frases de incentivo de estranhos, olhares curiosos e prognósticos entusiasmados sobre um possível futuro no circuito. Do meu lado, um orgulho sem igual e o início da crença de que talvez fosse esse, de fato, o caminho. Ao contrário dos meus pais, embarquei no delírio. Achava, aliás como acho hoje, que não haveria profissão mais legal no mundo do que aquela de surfista profissional. Não temia pelo sustento de Júlia, tampouco pelas dificuldades de uma vida nômade. Ao contrário, achava tudo isso muito bom. Algo meu se projetava, e acho que isso ocorre normalmente entre pai e filho, na vida daquela menina, bonita como ela só.
Logo, troquei a de espuma por uma de fibra. Dois patrocínios inesperados surgiram. A cada mês, diminuíamos o tamanho das pranchas. Lembro-me que iniciamos com uma 5,11, meses depois, Júlia já surfava com desenvoltura numa 5,5. Era lindo vê-la em direção ao mar, sentada ao meu lado no line up, remando junto comigo para passar a arrebentação. Oito anos. A conversa era de menina. Entre uma série e outra, falávamos sobre circo, novela e bonecas. A prosa somente era interrompida pelos meus gritos enlouquecidos quando ela se lançava sobre as onda, em um sutil zig zag, até a areia. Não sei precisar, exatamente, quando a brincadeira ganhou alguma seriedade. Mas sei que, um pouco por ela e um pouco por mim, uma outra intensidade tomou conta de tudo. Surfávamos no frio, com onda ruim, com vento. Nenhuma condição era adversa. Ríamos de tudo, da dificuldade de vestir o long, de dirigir molhado, da fome no fim de tarde. As sessões ganhavam contorno de treino… Algo havia mudado: eu, em constante sonho; ela, suponho, com o desejo de ficar mais perto do pai.
O encontro.
Aos nove anos, Júlia já tinha alguns resultados expressivos nos campeonatos caseiros. Já era reconhecida por todos que surfavam no Tejo, o rio da sua aldeia. Era hora de saber se aquilo era, de fato, possível. Convenci a minha mulher, sempre temerosa, que devíamos viajar para Santa Catarina a fim de ver uma etapa, patrocinada por uma grande marca, destinada exclusivamente para gurizada. Seria a primeira viagem que faríamos juntos, somente nós dois. Há anos atrás, eu tinha viajado para Joaquina e, desde então, não pisava naquela areia branca. Pelo que lembre, quando acabara de completar quinze anos, eu e os camaradas rumamos para o Sul em busca daquela onda… Miojo, barraca e o primeiro perrengue de uma trip interestadual. Foi ali que nasceu um novo modo de relacionar-me com o surf. Agora, pai e filha, passado e presente, recomporiam os caminhos de minha adolescência com a intenção de saber se Júlia daria continuidade ao sonho de menino do seu pai.
O campeonato foi, de muitas maneira, um ponto de virada. Foram dias intensos com bom surf e comida boa. Além disso, foi a primeira vez que vi Gabriel, Felipe e Jesse. Boa parte do dia, passei na areia a conversar com pais de competidores a fim de entender como funcionava, de fato, aquela máquina. Intervalava esses momentos com breves caídas no mar, eu e Júlia, ao lado do campeonato. A pequena já se enturmara com a garotada, mas havia algo, naquilo tudo, que lhe parecia estranho. À medida que os dias avançavam, eu deslumbrava-me com a novíssima geração do surf brasileiro enquanto Júlia pedia-me que saíssemos de lá, que rumássemos para as praias próximas a fim de surfarmos apenas nós dois, como, aliás, sempre fizemos
Acredito, hoje distante do tempo, que os pedidos da pequena foram motivados pelo enorme palanque, a praia cheia, o som alto, os gritos de dasagravo de um técnico com uma jovem que acabara de perder uma bateria e o depoimento de um pai cujas esperanças de sua família recaíam no corpo franzino de seu filho de doze anos… O ecos do profissionalismo faziam-se presentes, para o bem ou para o mal, e junto dele a consolidação do surf como uma profissão para muitos. De uma hora para outra, comecei a suspeitar que a companhia da Júlia no line up era algo mais valioso do que submetê-la, tão jovem, àquele universo. Se ela quisesse, se tivesse demonstrado real interesse de participar desse mundo, se tudo não passasse, como vejo hoje, de um desejo meu; talvez, digo talvez, valesse à pena.
Com três filhos, bem sei que cada criança tem um modo particular de expressar as suas vontades. Crianças nunca são iguais. Já encontrei gente miúda que, desde muito cedo, demonstrava um ímpeto para competição admirável. Identificar esse traço não é tarefa fácil para qualquer pai, sobretudo, se o talento despertar ainda cedo como algo fulgurante, capaz de obinubilar todo resto. No meu caso, o campeonato da Joaquina serviu para que reconhecesse o talento de minha filha como algo secundário… O que interessava a ela, mais do que qualquer outra coisa, era passar um tempo de vagabundagem com o seu pai, na praia, enquanto o dia corria e a noite se anunciava.
Muito provavelmente, a maioria de nós já é pai e, com sorte, viu e vê sua cria iniciar a paixão pelo esporte que tanto amamos. Afinal, os nossos filhos são a melhor companhia que podemos ter num fim de tarde ensolarado e disso não resta, pelo menos para mim, nenhum dúvida. Se, por algum instante, intuirmos que um talento se materializa durante as brincadeiras que compassam o vai e vem das ondas, recomendo, cada qual a seu modo, perguntar-lhes se eles desejam realmente participar de uma competição. O melhor é ser direto, mas não nos esqueçamos de manter os ouvidos e olhos sempre abertos; de um modo ou de outro, eles nos dirão o que desejam.
Ps: Enquanto escrevo, os gêmeos pulam ondas agarrados às suas pequenas pranchas... Entre uma caída e outra, um castelo de areia é construído à beira mar...

Prognósticos campeonato de 2015

Texto Publicado em Janeiro de 2015

Minha aposta não reside na luta pelo título, pois, a despeito do que parece desenhado, as minhas fichas estão novamente no Gabriel... A vontade de ganhar do menino somente é comparável, no circuito, àquela do sanguinolento e, como sabem, a do Adriano.
Sobre Mineiro, a torcida de sempre, a esperança de que ele se torne campeão mundial, embora acredite que ele não seja completamente aceito pelos donos do poder... Se ganhar, será a fórceps, no grito... Seria emocionante presenciar esse momento, mas acho que alguma água ainda será preciso correr sob sua prancha para oferecer nova modulação às notas dos juízes...
JJ... Bom... O mais vistoso e violento surf do circuito... O menino loiro parece ser um astro que brilha num céu sem atmosfera... Talento puro... Todavia, tal qual o seu braço, sempre pendente, sou levado a crer que a competição para ele, muitas vezes, não é o centro de seus preocupações. Sim, ele quer ganhar... O problema é saber se os trinta minutos de bateria, a limitação do tempo cronológico não é, o que me parece, uma afronta ao seu talento...
Uma vez, Joca Secco disse, numa belíssima entrevista: o bom do surf de competição é perceber que tudo deve acontecer sob precessão máxima: do tempo, da onda, da vontade de vencer o outro... Concordo, embora JJ, como aliás ocorre com Dane, é a exceção que contraria a regra... Ganhará títulos? Para isso, terá de passar pelo Gabriel e pela organização que elegeu Julian o seu porta estandarte.
Sobre Julian.... Com a palavra, a ASP...
Minhas torcida, todavia, concentra-se em outos dois brasileiros. Em primeiro lugar, em Felipe... Ah Felipe... Se dominar ondas maiores, o filho do Ricardo pode chegar entre os cinco primeiros... Não acho que ele é merrequeiro, ou coisa que o valha... Acho, isso sim, que terá tempo para aprimorar-se em ondulações acima de oito pés. Assim será, porque poucas vezes assisti a um surf tão rápido e forte... Ele é menino, ganhará corpo, consciência do que precisa fazer... acredito, piamente, que fará...
O outro, Jadson.. Sobre ele já escrevi algumas vezes... Quando lembro de Jadson, lembro de Peterson... A virada que fez esse ano foi, embora encoberta pelo brilho do Gabriel, uma das coisas mais emocionantes que vi no circuito. Se fez isso em 2014, o que ele poderá fazer em 2015? Sei lá...
Uma última palavra sobre Miguel, quem, em outra chave, lembra-me algo de JJ... Não no estilo tampouco na calibragem de seu surf... Aqui, a semelhança encontra-se, sem que minha mão pese uma tonelada, no temperamento. O surf mais elegante da tropa de brasileiros precisaria ter mais sangue nos olhos... Somente isso seria suficiente para subir posições no ranking e para firmar-se definitivamente no circuito com um dos grandes... Perdeu baterias bobas nesse ano, não pode e não precisa das esse mole...
Ps: Já comentamos o circuito de 2015... Presente em mim, a indignação com a morte do Ricardo... Sigamos em frente, mas não nos esqueçamos das feridas abertas para que não nos transformemos em insensíveis à brutalidade da vida...

Burton Automotive Pro 2015

Texto publicado em fevereiro de 2015

A nova geração..
Os últimos quatro anos muito se falou da Nova Geração do surf brasileiro. Liderados por Gabriel, os meninos, hoje jovens adultos, ganharam corpo e densidade no circuito. Venceram baterias, etapas difíceis, campeonatos. O volume e a rapidez com que se firmaram foram responsáveis pela sensação de que havia chegado a hora. As experiências passadas, a despeito de quem lutou a dura batalha do circuito e honrou as nossa cores, não previam o que aconteceu e, sobretudo, o modo como aconteceu. Por isso, a Nova Geração do Surf brasileiro, adjetivação que ouço desde menino quando a fornalha dos juvenis ascende ao profissionalismo, parece, hoje, um termo exclusivo daqueles nascidos ao redor da década de 90. Nessa toada, essas duas palavras tornaram-se uma espécie de mantra para qualificar a tomada de assalto, a afirmação do talento de um grupo, a conquista pelos primeiros lugares. Da mídia de língua inglesa aos nossos veículos especializados, acompanhamos esse movimento rumo à consolidação de Mineiro, Miguel, Felipe, Jadson, Gabriel, Alejo... Resultados consistentes demarcaram o atual momento do surf brasileiro de um modo tão distinto de outras épocas que, por vezes, somos levados a crer no ineditismo do aqui e agora... Como se, no passado, o que sempre existiu fosse a velha guarda, a qual fomentou a explosão que vemos diante de nossos olhos e que, com todo mérito e pompa, enche-nos de orgulho.
Quando se envelhece, e voltamos a nossa atenção para o passado, percebemos certa injustiça nesses julgamento sobre o tempo corrido, o que foi... Assisti, e assim recordo, a, pelo menos, quatro Novas Gerações do surf Brasileiro. Gente de muito talento, nem sempre reconhecida com títulos e lugares cativos entre os cinco primeiros... Ainda que Fábio, Teco, Guilherme, Renan, Raoni e Vitinho tenham alcançado brilho próprio, alguns dos jovens que se lançaram na aventura da competição não conseguiram manter, por longo período, uma constância que lhes permitissem aplacar as expectativas criadas e responder aos resultados que o talento prometia-lhes ser o caminho natural.
Quando tudo parecia consolidado pela história, surge, novamente, Pedro. Lembro-me, como se fosse hoje, o sentimento que o título juvenil causou em mim e nos meus amigos. "É agora, dizíamos. Esse título virá!" A empolgação, misto de certeza e esperança, transformou-se à medida que os anos passaram. O ciclo competitivo engrenou-se em máquina e novas caras surgiam e outras tantas tomavam novo rumo.
Sim, Alejo surfou como gente grande e levou; sim, David ainda tem muito o que provar, mas o seu surf tem força e deve ser levado em consideração... Mas, para mim, o que valeu, e o Túlio foi muito feliz em sublinhar esse feito, foi ver Pedro de volta. Se esse retorno será para valer, se ele entrará no WCT no ano que vem, parece-me menos importante do que assistir a um camarada reescrever a sua história...

Silvana Lima: uma possível história

Texto publicado em fevereiro de 2015

Uma possível história com Silvana Lima...
Quando completei 16 anos, eu convenci meus pais que a hora de viajar para lugares remotos a fim de surfar chegara. Era um tempo em que as passagens de avião eram, quase sempre, inacessíveis para a classe média brasileira; que o único meio de guiarmo-nos resumia-se à leitura do Guia 4 Rodas; em que não havia muita informação prévia para orientar, com mínima segurança, o planejamento de uma empreitada dessa natureza… O plano: três meses a viajar pelo Nordeste Brasileiro… Para quem morava em São Paulo e ainda não pagava sequer a entrada do cinema com dinheiro próprio, isso significava uma aventura daquelas… daquelas de contar para os netos… O fato é que eu tinha um dinheiro no bolso, uma promessa de uma ordem de pagamento em caso de emergência, isto é, se houvesse um banco perto… e… muita ansiedade em desbravar o mundo… Quando se é mais jovem, nós somos movidos por uma estranha força que nos projeta em busca de algo que não conhecemos, de algo que seja, por tamanha singularidade, capaz de provocar em nós uma experiência única e, portanto, maravilhosa. Uma trip de surf sempre teve para mim essa mística. Viajar para surfar é ver algo além do Tejo, o rio de minha aldeia…
Por isso, o meu desejo íntimo resumia-se, à época, em encontrar lugares sem energia elétrica, sem lanchonetes, sem nada para comprar… Um banco? Sejamos francos….Parecia-me coisa de pacote turístico… Eu, ao contrário dos locutores da ASP, odeio agência de viagem. Herança de uma geração que cresceu com as histórias contadas pelos surfistas das décadas de sessenta e setenta…
Era, na verdade, um tempo em que viajar resumia-se a longas horas, por vezes dias, em um ônibus interestadual sem garantia de que encontraríamos qualquer conforto ao final da jornada. Mas, afinal, quem deseja conforto, rapidez, vida segura; quando o sonho de uma surf trip move corações e mentes? Digam-me, camaradas: quem?
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Nessa toada, lá fomos eu e meu querido amigo, Chocolate, rumo a Paracuru. Os três dias de viagem entre São Paulo e Ceará pareciam brincadeira de criança frente à possibilidade de vermos, com os olhos que a terra há de comer, as famosas direitas… Lembro-me, como se ainda fosse criança, de ouvir dos amigos de meus pais as histórias sobre as longas direitas de um metro, da água quente, de poucos camaradas na água. Paracucu, por volta dos meus quinze anos, foi a minha primeira Passargada. Depois, outras praias ganharam essa simbologia, mas, confesso, que nunca com a mesma força e atração que a cidade, onde se encontrava o Ronco do mar, produziu, em mim, na minha juventude…
Ver as direitas quebrando… uma linha atrás da outra… é uma das melhores memórias da minha adolescência. Surfava todo dia… quando a maré descia e quando ela subia. Surfava em frente a um quiosque… Lembro-me da senhora que era dona, de alguns filhos, todos pequenos… Eles revezavam uma prancha de madeira, com uma quilha improvisada. Uma imagem que vi muitas vezes em outras viagens… Crianças, sem muito dinheiro, surfando muito bem em condições precárias enquanto jovens abastados cravavam a borda na água, sem jeito para coisa. Afinal, talento não é condicionado por berço de ouro ou é acalantado por boas condições; talento, simplesmente, nasce…
O que, realmente, me lembro desse gurizada; o mais velho deveria ter, por volta, de dez anos; eram os comentários ácidos sobre os estilos dos surfistas de prancha de fibra, ouvidos por mim, entre uma caída e outra, quando descansava sobre a sombra do quiosque. Eles eram implacáveis. A minha base fechada, forjada com muito esforço para emular, de modo canhestro, os grandes surfistas havaianos, fora desacreditada em meio a risos e chacotas… Sempre quis surfar como Garry Lopes… Reconheço: deviam ter certa razão, uma vez que do meio deles nasceria uma das maiores representantes do surf moderno… E, confesso, sempre fui meio old school… Toda vez que vejo, leio ou escuto qualquer coisa a respeito de Silvana Lima gosto de pensar que ela era uma dessas crianças… Talvez ela, de fato, fosse. Talvez, não… Mas isso não importa muito… Para mim, saber que qualquer um pode ter se tornar um exemplo, vale mais…
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Quando se é pai de criança pequena, uma das brincadeiras comuns é fantasiar com eles uma luta em que, cada partícipe, assume a identidade de um super herói. Ora você é Batman, ora Superman… No meu caso, o surf sempre alinhavou a minha história com a Júlia, surfista com muito talento e que, por pouco, não enveredou para competição. Quando lutávamos na cama, a menina de sete anos gritava, punhos levantados: eu sou a Silvana Lima e você, pai? Bem.... Hoje, eu também sou a Silvana Lima, minha filha….

Páscoa de 2015...

Texto publicado na páscoa de 2015

O feriado...
Páscoa… Família, ovos, chocolate… Não sei vocês, mas eu sempre fico melancólico… Lá estou em busca de músicas antigas, fotos dos álbuns, imagens de vhs… Remexo em velhas coisas e, invariavelmente, encontro algo que anima o feriado, sobretudo, quando os sinos não quebram lá essa coisa…
2015…
É tempo de Chet Baker e Gerry Lopes… Achei, por acaso, uma fita de gravações do Realce… Vários programas de onda boa, música melhor, surf, quase sempre, espetacular… A vitória de Nick Wood com desseseis anos, uma sessão de Curren em Rincon ao som do The Cult… The Cult? Sim, uma banda dos oitenta com um cantor cabeludo e excelente… Oito pés, ondas sem fim e no desenho, oscilando entre a base e o lip, um esteta… Como era bonito o surf do rapaz… Elegante, minimalista, nenhum movimento desnecessário… Surf de borda no auge de sua manifestação…
O semi deus…
No meio das gravações, um perfil do surfista de quem mais ouvi falar na minha adolescência… Todos os amigos de meus pais, sempre categóricos, diziam que o maior de todos, o mais incrível surfista da história, era uma tal havaiano com sobrenome latino chamado Gerry Lopes… Nos anos oitenta, internet era, possivelmente, nome de danceteria e videos de surf não eram coisas frequentes nas milhares de locadoras existentes em qualquer cidade brasileira com mais de dez mil habitantes…
Todavia, sempre havia uma foto aqui e acolá do camarada, mas vídeo, imagem e movimento, era muito raro. Daí... as histórias narradas depois de cada sessão de surf com a velha guarda desenhavam para mim o contorno de um homem que, não imortal, muito se assemelhava a um ser sobre natural... “João, você precisava vê-lo em Pipe, corpo ereto, cavada com as quilhas para fora, um controle sobre o tempo e o espaço que jamais vi em outro surfista… Possivelmente, em nenhuma outra atividade humana…” Diziam os amigos de meus pais…. Eu, menino, organizava um surf imaginário, em que a onda mais temida do arquipélago transformava-se, sob a prancha vermelha de raio amarelo, numa espécie de piscina olímpica em um dia quente de verão…
Pipe… Lopes... vhs....
O velho e bom Realce, programa nunca superado sobre o nosso mundinho, retratou o havaiano em um de seus programas… E, hoje, na Páscoa… na espera do recomeço da etapa dos sinos, eu assisto perplexo o maior controle, que até hoje se tem notícia, de um surfista sobre a majestosa rainha do litoral norte…
O vagabundo…
Meu pai sempre ouviu música boa… Uma de suas virtudes foi apresentar para os seus filhos uma discoteca de cerca de cinco mil discos em que pude escutar grande música, independente do gênero, da época, da determinação geográfica… Um dos meus prediletos, um trompetista americano com pinta de galã que cantava com voz suave…. O camarada, viciado em heroína, tinha uma elegância... Uma nota após a outra, sem nenhum desperdício… Senti saudades do velho e, por essas coisas dos destino, assisti ao havaiano enquanto o som do rapaz preenchia todas as frestas de minha casa…
O surf hoje…
Gostaria de que houvesse ainda espaço para esses caras no mundo… Gosto muito do surf moderno, da porrada na orelha, da força e da rapidez… Entretanto, aquela elegância descompromissada, que também vi em Curren e em Machado, aquela fluidez…. essa eu não vejo mais… Nenhum surfista do tour, por mais espetacular, não parece, exceção feita, talvez, ao menino loiro e, certamente, ao ET, possuir a cadência desse tempo perdido, o qual, vez ou outra, é capaz de lançar luz sobre o que importa…
É verdade que o filho do Charles, Felipe, Mick são de outro mundo... Mas... não é disso que eu falo... Para mim, o controle do tempo e do espaço... o domínio do mar... isso, sim, quando acontece é estarrecedor...
No momento em que uma onda como a dos sinos quebra, sempre espero ver a centelha desse tempo reascendida… sempre espero rever o espirito desses camaradas que foram capazes de mostrar para o mundo o que, de fato, é a integração entre homem e natureza…
Páscoa, hora do renascimento…

Metade do campeonato nos Sinos.

Texto publicado em Março de 2015

Felipe...
Não podemos dizer que o moleque não tinha um surf de encher os olhos em 2014... No entanto, como podemos explicar a virada desse ano... Como? O camarada está com o surf nos cascos, olhar compenetrado... Posso estar enganado, espero que não, mas o filho do Ricardo encontrou aquele estágio em que, outrora, somente encontrei nos grandes... É verdade que Gabriel, talvez porque o tenha visto ainda menino, é o surfista brasileiro que mais me comove. Torço por ele agora tal qual torci na França contra Ibeli, na Nova Zelândia no ISA, no segundo semestre do primeiro ano dele no WCT... Todavia, o quadrante está mudando e a tempestade que, ano passado, soprava de Maresias parece encontrar o seu marco zero em Ubatuba... É possível contar nos dedos o número de surfistas que provocaram em mim a sensação de espanto como esse rapaz o fez, até aqui, nas duas primeiras etapas da temporada de 2015... Um fora de série? Possivelmente... A força de suas rasgadas, somada a uma fluidez inacreditável, é capaz de deixar qualquer australiano dos anos oitenta perplexo, perdido no mar feito um naufrágio em meio à tormenta... O pior, ou melhor, é constatar que Felipe foi aceito pelos donos do jogo... Os elogios da bancada de narradores de língua inglesa são um prenúncio da força do garoto...
Adriano..
O mesmo não acontece com Mineiro... Sempre arranca a fórceps os resultados, sempre, com sangue nos olhos, se encontra frente a forças desconhecidas... Na segunda fase, ganhou no surf, no grito, na autoridade de quem não admite ser rabeado ao meio dia, entre seus amigos, na praia em que nasceu... Suspeito que tem força bastante para enfrentar essas situações por muito tempo. Se um dia levar o caneco, devemos prestar um dia inteiro de silêncio para quem é um exemplo de determinação para nós, para nossos filhos e para os filhos dos nossos filhos...
Jadson...
No caminho aberto por Adriano, Jadson... Jadson é um fenômeno.... ainda que falem sem parar do quique da prancha entre uma manobra e outra. O camarada ganhou do mais estiloso surfista brasileiro nos sinos, nos sinos... Ganhou porque, tal qual o amigo do Guarujá, nada lhe parece impossível... Como gosto de ver esse menino... Quando ganha, abro um sorriso no canto da boca e suspiro... Muito bem, Jadson, muito bem...
Italo e Dantas...
Excelentes surfistas... mas o primeiro ano no circuito sempre cobra a conta... Ainda bem que essa dívida veio na segunda etapa... Agora que está paga, força e para frente....
Silvana...
Bom, Silvana é um misto de Mineiro e Felipe... Se Silvana ganhar esse ano, aceito até que a Diva ganhe o masculino... Se Silvana ganhar esse ano, será o retorno mais impressionante de um surfista no tour desde o regresso de Curren... E isso não é pouco... não mesmo...

Onde está Gabriel?

Texto publicado em abril de 2015

Gabriel;
Nos últimos cinco anos, nenhum surfista que se sagrou campeão do circuito mundial iniciou a temporada tão longe do topo do Ranking como Gabriel começou a temporada de 2015. É claro que o vice campeão de 2014, Mick, também somou um 13º lugar a um 5º lugar nas duas primeiras etapas. Todavia, lembremos, ele não levou o caneco…
No antigo WCT tal qual no atual WSL, constância parece ser a palavra de ordem.
Noves dentro, noves fora, nós sabemos, isto sim, que a disputa, quando chega ao Havaii, é reduzida a uma contenda entre, no máximo, três surfistas.
Não é verdade que a história se repete, ora como tragédia, ora como farsa… Isso porque sempre há possibilidade do novo, do inesperado ocorrer. Sem essa certeza, nós poderíamos, muito bem, desistir do futuro… Mas, sejamos francos, nenhuma cadeia de acontecimentos se torna constância por acaso. Algo devemos aprender com o passado… Para Gabriel, a temporada de 2015 será um grande desafio… As próximas etapas não podem contemplar erro; isto é, nos dez meses seguintes, as pernas não podem descansar, a cabeça não pode girar ao redor do próprio eixo e, sobretudo, o surf dele deve retornar ao estágio de um passado recente… Ele consegue? Se há alguém que pode superar esse desafio é o atual campeão mundial… Esse menino parece fadado a surpreender a tudo e a todos… Se ganhar nesse ano, será uma conquista memorável… Que isso o motive…Não acredito, pois, que a escolha de prancha, mar ruim ou uma falsa interferência sejam as causas que explicam o começo de ano turbulento…. Somente Gabriel sabe o que ocorre…Cabeça no lugar e espinha ereta, ambiciono para o filho do Charles… A entrevista depois da derrota para Adriano preocupa-me mais do que a instabilidade das baterias…
Gabriel precisa lembrar toda manha: o que ele sabe sobre surf não se desaprende….
Mick;
Esse camarada, sejamos francos, é um demônio… Veio para matar. Para mim, o melhor surfista do dia… Por incrível que possa parecer, a minha opinião acompanha, nesse caso, a dos juízes, o que nem sempre acontece… O surf preciso e rápido do australiano, aparentemente, propício às ondas longas, lisas e manobráveis adequou-se, com muita harmonia, às condições adversas da praia dos sinos. Embora Mick sempre compita acima da média de seus pares, o que vi, aqui, foi um outro nível de seu surf, o qual parece ter encontrado a fórmula de impor-se, com muito vigor, sobre uma natureza nem sempre amigável. Rasgada em espaços curtos, velocidade e muita radicalidade. O loiro está na briga e, creio, está no jogo com uma única obsessão: ganhar…
Felipe;
O menino surfa como gente grande… Parece ter acusado o golpe da liderança, o que, diga-se de passagem, não foi muito grave, pois arrancou um bom 5º lugar nos sinos. Isso será muito útil para Felipe no decorrer da temporada. O surf do filho do Ricardo ainda nos surpreenderá nesse ano. O fato é que ele se pôs na disputa pelo caneco e, mesmo que eu saiba da necessidade de provar-se em Fiji e em Teahopoo, apostaria boa parte das minhas fichas…
O respeito que ganhou do mundo do surf nessas duas etapas, brasileiros ou não, é tão impressionante que somente um tolo descartaria o surf desse menino como um dos fortes candidatos ao título da temporada.
Adriano;
Meu coração, meu desejo e minha fé voltaram-se, nessa final, completamente para Adriano. Torci muito para ele levar esse campeonato… Durante a última bateria contra Mick, imaginava o que escreveria… Um bom ensinamento da vida nasce da certeza de que o futuro nunca é certo… Sempre disse que Mineiro nunca foi completamente aceito pelos donos do jogo… Às vezes, o seu surf se impõe… à vezes, não… Quando isso acontece, tem de ser incontestável… Não quero ser do contra, mas não acho que isso ocorreu… Acredito que, e digo isso com certa dor, Mick venceu… Mas e daí… Mineiro aparece em 2015 com uma força que….valha-me deus… A despeito das chances de seus adversários, de alguns surfistas para quem eu também torço; nesse ano, se eu pudesse escolher, o caneco iria para o Guarujá… ou para Florianópolis, onde ele reside… Tomara… Tomara…
Acabo aqui com o ultimo parágrafo que escrevi do texto escrito após a primeira rodada dos sinos… Pode parecer repetitivo, mas é isso que achei à época e continuo a acreditar agora…
"Mineiro é outra história… Não me sinto apto para cravar nenhum prognóstico sobre esse camarada. A minha sensação é que tudo e todos podem vergar frente à força de vontade do surfista brasileiro mais obsessivo da nossa recente história.
Adriano quer porque quer mostrar ao mundo que não veio a passeio…"